Entre os povos eslavos existe um simbolismo particular que envolve um dos menores e mais delicados animais conhecidos: a joaninha. Em ucraniano, ela se chama “vaca de Deus” (Божа корівка), expressão que parece saída de um conto pastoral, mas que guarda uma densidade espiritual profunda. Este diminuto inseto, pousando nas mãos das crianças, é visto como mensageiro da Providência, portador de boa fortuna e lembrança viva de que o Criador se ocupa até das criaturas mais modestas.
Se fôssemos transportar esse imaginário para a cultura brasileira, poderíamos dizer que a joaninha seria o prêmio máximo de uma vaquinha — aquela prática comunitária de juntar pequenas contribuições para cooperar no bem de alguém. A “vaquinha eslava”, portanto, teria como ápice simbólico não uma recompensa material, mas a bênção da própria vaca de Deus: um selo de que o gesto coletivo nasceu sob o olhar do Altíssimo.
Essa aproximação simbólica, porém, abre caminho para uma reflexão mais profunda sobre a história da vaquinha no Brasil — e sobre como um gesto originalmente caridoso, comunitário e quase religioso foi degringolado pela lógica republicana que desconfia da iniciativa social e criminaliza aquilo que nasce da colaboração popular.
Da caridade imperial à contravenção republicana
Poucos brasileiros sabem que o jogo do bicho, tão associado ao submundo da contravenção, nasceu como uma forma de vaquinha — uma rifa criada para salvar o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, fundado e dirigido pelo barão João Batista Viana Drummond.
Com a queda da monarquia em 1889, o apoio estatal ao zoológico desapareceu. O barão, então despido da proteção e do prestígio imperial, viu-se diante do risco de fechar as portas. A solução encontrada foi engenhosa e ao mesmo tempo profundamente popular: vender bilhetes de entrada que vinham associados a um animal. No fim do dia, um desses animais era revelado como o “sorteado”, e quem tivesse o bilhete correspondente recebia um prêmio.
Era uma rifa. Era uma vaquinha. Era um ato comunitário de preservação cultural.
Nasceu daí o hábito de associar números a animais — e, com o tempo, o jogo do bicho se autonomizou da rifa original. Mas seu espírito inicial foi inequívoco: uma iniciativa caridosa para salvar um patrimônio que o Estado republicano abandonara.
O que era caridade, contudo, a república transformou em contravenção penal. É simbólico — e não acidental — que o Estado que derruba tradições, símbolos e instituições orgânicas tenha visto numa prática popular um risco à sua autoridade abstrata.
A perda dos símbolos e a corrupção da solidariedade
O paralelo com a joaninha eslava ilumina justamente o que se perdeu. Entre os eslavos, a vaca de Deus não é apenas um animalzinho simpático: é um símbolo de cuidado divino, de proteção e de boa sorte. É a imagem do pequeno gesto que contém um valor espiritual enorme.
Ao projetar isso na cultura brasileira, compreende-se que a vaquinha — seja para pagar um remédio, socorrer um vizinho, ajudar um amigo — sempre foi um ritual de solidariedade que repousa no mesmo princípio: pequenas contribuições, quando somadas, tornam-se expressão de um bem maior.
Quando a república transforma esse gesto comunitário em contravenção, ela não apenas criminaliza um hábito: ela rompe o elo entre o símbolo e a caridade, entre o gesto e sua origem espiritual. Deixa de ver o povo como comunidade e passa a tratá-lo como massa a ser controlada.
A degradação do jogo do bicho não veio do povo; veio da ruptura institucional que o primeiro regime republicano impôs. O que antes era um ato de generosidade coletiva se tornou terreno para vícios e ilegalidades justamente porque o Estado tratou o símbolo como problema, e não como patrimônio moral.
Sem símbolos, não há cultura; sem cultura, não há caridade
Culturas tradicionais sobrevivem porque preservam seus símbolos. A joaninha eslava sobrevive porque é mais do que um inseto: é a memória viva de que Deus não abandona seus filhos. A vaquinha brasileira sobreviveria melhor se ainda fosse vista como aquilo que foi em sua origem: uma forma natural de solidariedade popular.
O que se perde quando símbolos são destruídos? Perde-se o senso de proporção, de continuidade, de pertença. Perde-se a noção de que os pequenos gestos — como juntar moedas ou proteger um bichinho — carregam uma grandeza espiritual.
Ao transformar a caridade em contravenção, a república não apenas legalizou o vício: ela dessacralizou o gesto e apagou a memória da comunidade que o sustentava.
Talvez por isso seja tão fecunda a imagem da joaninha eslava: ela nos lembra, silenciosamente, que a verdadeira riqueza de um povo não está nas leis que o oprimem, mas nos costumes que o elevam; não nos códigos penais impostos de cima para baixo, mas nos gestos espontâneos que brotam do coração — aqueles que, ainda hoje, mereceriam chamar-se a vaca de Deus.
A Prova Paroquial: a rifa como ato de caridade conservado pela Igreja
Se existe uma instituição que preservou, quase intacto, o espírito original da rifa — isto é, a expressão comunitária de caridade — essa instituição é a Igreja. Em praticamente todas as dioceses e paróquias do Brasil, ainda hoje, as rifas são realizadas para:
-
reformar a igreja,
-
financiar obras sociais,
-
ajudar paroquianos em dificuldade,
-
sustentar grupos de jovens, corais e vicentinos.
Ou seja: a rifa continua exatamente onde sempre esteve — na esfera da caridade organizada.
A Igreja preservou o rito, o gesto e o sentido.
O Estado republicano, ao contrário, não apenas o criminalizou quando ligado ao “jogo do bicho”, como contribuiu para manchar o próprio símbolo que sustentava esse costume.
O efeito colateral da criminalização: o sumiço dos animais
A prova mais visível dessa deturpação é justamente o que se mencionou:
Como o jogo do bicho se tornou afamado, as rifas paroquiais — e as rifas escolares e comunitárias — abandonaram o símbolo dos animais.
Antes da República, associar números a animais não era um problema; era um símbolo alegre, folclórico, acessível ao povo. A rifa do Barão de Drummond usava animais porque eles eram:
-
reconhecíveis por analfabetos,
-
simpáticos às crianças,
-
parte da cultura urbana carioca,
-
elementos naturais de um zoológico.
Era um símbolo inclusivo.
Depois que o Estado transformou essa prática caritativa em contravenção, o símbolo foi contaminado, e seu uso em rifas honestas passou a parecer arriscado, ambíguo ou indevido.
As paróquias, ao manterem a prática, foram obrigadas a purificá-la do estigma estatal, retirando os animais para não parecer uma associação com o jogo do bicho.
Assim, o Estado republicano logrou destruir não apenas a prática popular, mas também o imaginário simbólico que lhe dava legitimidade cultural.
O paralelo com a joaninha eslava fica ainda mais forte
Se a joaninha é, para os eslavos, a “vaca de Deus”, então as rifas paroquiais brasileiras são um retrato claro da manutenção desse sentido de Providência:
-
a comunidade contribui,
-
não por vício, mas por amor,
-
visando suprir as necessidades reais de alguém,
-
sob o olhar da Igreja, que sempre preservou a caridade como valor.
A rifa católica, portanto, é um resquício quase medieval da economia moral cristã: um modo simples de distribuir bens pela via da solidariedade, e não da competição ou da ganância.
Por isso mesmo ela sobreviveu.
E por isso mesmo o Estado republicano não conseguiu destruí-la — apenas empobreceu seu símbolo.
Bibliografia Comentada
1. Câmara Cascudo, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro.
Obra essencial para compreender o imaginário popular brasileiro, incluindo jogos, crenças e costumes que dão base à história do jogo do bicho e das rifas como práticas tradicionais.
2. Mello, Marcelo. O Jogo do Bicho: História, Poder e Controvérsias.
Estudo detalhado da origem caritativa da rifa do Barão de Drummond e da posterior criminalização pela República. Fundamenta a tese da transformação de um gesto de caridade em contravenção.
3. Villela, Hélio. O Império Acabou, O Zoológico Ficou: A História do Barão de Drummond.
Biografia do fundador do zoológico e criador da rifa dos bichos. Excelente para contextualizar historicamente a passagem da filantropia imperial à repressão republicana.
4. Ortiz, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro.
Análise sobre cultura popular e criminalização estatal. Ajuda a entender como práticas comunitárias — inclusive rifas — foram estigmatizadas pelo aparato legal republicano.
5. Eliade, Mircea. Imagens e Símbolos.
Fundamental para compreender o papel dos símbolos na vida cultural e religiosa. Sustenta a reflexão sobre a perda dos animais como símbolos nas rifas.
6. Gusejnov, Vladimir. Slavic Folk Beliefs and Practices.
Estudo profundo sobre o simbolismo eslavo, incluindo a joaninha como “vaca de Deus”. Ampara a parte comparativa do artigo.
7. Needham, Rodney. Symbolic Classification.
Clássico da antropologia estrutural, útil para interpretar como diferentes sociedades organizam significados por meio de símbolos — e o que se perde quando eles são destruídos.
8. Ferreira, João Batista. Economia Moral Católica no Brasil.
Discussão sobre práticas paroquiais de caridade, incluindo rifas, festas comunitárias e doações, mostrando como a Igreja preservou formas tradicionais de solidariedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário