Introdução
O avanço do pensamento humano raramente é obra de um indivíduo isolado. Mesmo quando a reflexão parece solitária, ela é sustentada por um pano de fundo social, histórico e cultural que fornece ideias, problemas, linguagens e categorias. Reconhecer esse dado elementar não diminui a responsabilidade pessoal do pensador; ao contrário, define com maior rigor o seu papel. Pensar bem não é criar ex nihilo, mas saber receber, julgar, ordenar e conservar aquilo que merece permanecer.
Este artigo propõe uma concepção de progresso intelectual fundada não na novidade, mas no critério; não na ruptura sistemática, mas na depuração contínua do cabedal teórico individual.
O caráter social do progresso das ideias
Nenhuma ideia surge em completo isolamento. Mesmo as formulações mais originais pressupõem um diálogo prévio com autores, tradições, experiências coletivas e conflitos intelectuais herdados. O progresso das ideias é, nesse sentido, um fenômeno social: a sociedade produz problemas, oferece soluções parciais, acumula erros e acertos, e transmite tudo isso aos indivíduos que nela se formam.
O pensador sério não nega essa herança nem a aceita de modo acrítico. Ele a estuda. O progresso social das ideias fornece o material bruto; o progresso intelectual individual consiste em trabalhar esse material, compreendê-lo em profundidade e submetê-lo a um juízo rigoroso.
Estudo, incorporação e responsabilidade pessoal
Receber ideias não equivale a adotá-las. O estudo é precisamente o intervalo entre a recepção e a incorporação. Nesse intervalo, o indivíduo exerce sua responsabilidade intelectual: compara, testa, confronta, mede consequências e verifica compatibilidades.
Incorporar uma ideia ao próprio cabedal teórico significa torná-la operante, isto é, capaz de orientar o juízo, a ação e a interpretação da realidade. Ideias incorporadas moldam a inteligência; por isso, a incorporação não pode ser indiscriminada. Toda ideia aceita altera o conjunto, e toda alteração exige consciência de custo e benefício.
Novidade não é critério de verdade
Um dos erros recorrentes da mentalidade moderna é confundir progresso com novidade. A simples substituição do antigo pelo novo, sem exame de mérito, produz instabilidade intelectual e empobrecimento teórico. O novo pode ser superior, inferior ou apenas diferente — a cronologia, por si só, nada decide.
Da mesma forma, a antiguidade de uma ideia não lhe confere automaticamente valor. Ideias antigas podem estar superadas, mal formuladas ou fundadas em premissas falsas. O critério decisivo não é a idade, mas a qualidade.
A lógica da substituição seletiva
O verdadeiro progresso intelectual ocorre quando ideias melhores substituem ideias piores. Trata-se de um processo seletivo, não cumulativo no sentido vulgar. O cabedal teórico não cresce por simples adição, mas por refinamento.
Uma ideia superior é aquela que explica mais com menos, que integra o que havia de válido nas formulações anteriores, que resiste melhor à confrontação com a realidade e que mantém coerência interna. Quando uma ideia assim se impõe, não há perda em abandonar a anterior; há ganho em clareza e precisão.
Tradição crítica e continuidade
Essa concepção de progresso afasta tanto o tradicionalismo acrítico quanto o revolucionarismo intelectual. Não se trata de conservar tudo o que foi herdado, nem de destruir tudo em nome do novo. Trata-se de manter uma tradição crítica, na qual há continuidade sem imobilismo e mudança sem iconoclastia.
O pensador que opera nesse registro reconhece que a inteligência humana avança por correções sucessivas, não por saltos arbitrários. Cada geração herda um patrimônio intelectual que precisa ser examinado, purificado e, quando necessário, corrigido.
Conclusão
Progredir intelectualmente não é caminhar sozinho, mas também não é seguir a multidão. É participar do progresso social das ideias com discernimento pessoal, adotando não aquilo que é mais recente, mas aquilo que é melhor. O avanço real do pensamento consiste em substituir o insuficiente pelo mais verdadeiro, o confuso pelo mais claro, o frágil pelo mais sólido.
Nesse sentido, o progresso não é uma corrida para frente, mas um trabalho paciente de lapidação — um esforço contínuo para que o cabedal teórico pessoal se torne cada vez mais fiel à realidade que pretende compreender.
Bibliografia comentada
ARISTÓTELES. Metafísica.
A obra fornece o fundamento clássico da distinção entre opinião, conhecimento e ciência, além de estabelecer a centralidade do princípio de não contradição como critério último de inteligibilidade. É especialmente relevante para a noção de que o progresso do conhecimento não se dá por mera acumulação, mas pela identificação das causas mais universais e verdadeiras.
Santo TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica (seleções).
Tomás oferece um modelo exemplar de incorporação crítica da tradição: assimila Aristóteles, os Padres da Igreja e autores árabes, depurando erros e integrando acertos em uma síntese superior. Sua metodologia ilustra com clareza a lógica da substituição seletiva e da continuidade intelectual sem servilismo.
NEWMAN, John Henry. An Essay on the Development of Christian Doctrine.
Newman formula critérios objetivos para distinguir desenvolvimento autêntico de corrupção doutrinal. Embora aplicado ao campo teológico, seu arcabouço conceitual é altamente fecundo para pensar o progresso intelectual em geral, especialmente a diferença entre evolução orgânica e ruptura arbitrária.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.
A obra explicita o caráter histórico e tradicional de toda compreensão humana, combatendo a ilusão de um sujeito cognoscente totalmente desvinculado de heranças culturais. Gadamer é fundamental para compreender o papel produtivo da tradição quando submetida a uma hermenêutica consciente e crítica.
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações.
Popper contribui para o tema ao enfatizar que o avanço do conhecimento ocorre pela eliminação de erros, não pela confirmação ingênua de hipóteses. Sua abordagem reforça a ideia de progresso como depuração racional, ainda que limitada por pressupostos epistemológicos próprios da filosofia da ciência moderna.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas.
Embora frequentemente associado a uma leitura relativista, Kuhn é útil para compreender os mecanismos sociais do progresso intelectual e os limites do critério de novidade. Lido criticamente, ajuda a distinguir entre mudanças de paradigma necessárias e modismos intelectuais destrutivos.
OLAVO DE CARVALHO. O Imbecil Coletivo.
A obra oferece uma crítica contundente à adoção acrítica de ideias novas no ambiente cultural e acadêmico brasileiro. Sua relevância, neste contexto, está na denúncia do prestígio automático da novidade e na defesa do critério de verdade como superior ao consenso social ou à moda intelectual.
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