Introdução
A distinção entre comunidade imaginada e comunidade revelada não se esgota no plano simbólico ou sociológico. Trata-se de uma distinção ontológica, com consequências diretas sobre a forma como o Estado reconhece limites, assume deveres e estrutura seu orçamento fiscal.
O orçamento público, longe de ser um instrumento meramente técnico, atua como um índice de verdade política: ele revela se a comunidade política é tratada como uma realidade histórica concreta ou como uma projeção narrativa sustentada por expectativas.
Este artigo sustenta que Estados fundados em comunidades imaginadas tendem a operar com orçamentos fictícios, enquanto Estados enraizados em comunidades reveladas são forçados à disciplina fiscal como condição de sobrevivência histórica.
1. Comunidade imaginada: projeção identitária e performatividade fiscal
A noção de comunidade imaginada, formulada por Benedict Anderson, descreve comunidades cuja coesão depende de narrativas simbólicas compartilhadas, e não de vínculos históricos efetivamente vividos em comum. O problema não está na imaginação em si, mas em sua substituição da realidade.
No plano fiscal, isso se manifesta de modo recorrente:
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orçamentos baseados em receitas projetadas, não realizadas;
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expansão de gastos fundada em promessas morais abstratas;
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tratamento do déficit como instrumento político legítimo;
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transferência sistemática de custos para o futuro.
O orçamento torna-se, assim, um ato performativo: gasta-se para que a comunidade venha a existir conforme imaginada. O Estado passa a operar como se a riqueza futura fosse um direito adquirido no presente.
2. Comunidade revelada: história, lealdade e reconhecimento dos limites
A comunidade revelada não nasce de uma decisão discursiva, mas de:
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continuidade histórica;
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sacrifícios efetivamente realizados;
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lealdades testadas sob risco;
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capital produtivo acumulado ao longo do tempo.
Ela não precisa ser inventada, pois se manifesta na realidade social.
Seu orçamento fiscal reflete essa condição:
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prudência na estimativa de receitas;
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reconhecimento explícito de limites;
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tratamento do gasto público como consequência de deveres reais;
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incorporação de perdas, cancelamentos e custos evitados como aprendizado institucional.
Aqui, o orçamento não cria identidade: ele reconhece o que já existe.
3. O orçamento como critério ontológico da verdade política
O orçamento público funciona como um exame de realidade da comunidade política.
Ontologicamente:
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a comunidade imaginada vive no regime da potência não testada;
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a comunidade revelada vive no regime do ato imperfeito, mas real.
Por isso:
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comunidades imaginadas convivem com déficits crônicos sem crise moral;
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comunidades reveladas associam desequilíbrio fiscal a falha de responsabilidade histórica.
O orçamento, nesse sentido, é uma confissão pública do ser do Estado.
4. Casos concretos
4.1 Brasil: narrativa identitária e orçamento dissociado da realidade
Desde a proclamação da República, o Brasil construiu uma comunidade política fortemente dependente de narrativas abstratas de povo, progresso e justiça social, frequentemente dissociadas de sua base produtiva real.
No plano fiscal, isso resultou em:
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déficits estruturais recorrentes;
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inflação como mecanismo de ajuste implícito;
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expansão permanente de direitos sem lastro produtivo correspondente;
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judicialização do orçamento, com decisões que criam despesas sem responsabilidade fiscal.
O orçamento brasileiro opera, em grande medida, como instrumento de manutenção de uma comunidade imaginada, cuja coesão depende da promessa constante de benefícios futuros.
4.2 Europa Central (Polônia como caso paradigmático)
Na Europa Central, especialmente na Polônia, observa-se uma relação distinta entre comunidade, história e orçamento.
A experiência histórica de:
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ocupação estrangeira;
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perda de soberania;
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reconstrução nacional baseada em trabalho, família e Igreja,
produziu uma comunidade revelada pela adversidade.
Isso se reflete em:
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maior sensibilidade política ao endividamento excessivo;
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resistência cultural à expansão ilimitada do Estado;
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compreensão difusa de que o orçamento expressa limites reais, não aspirações ideológicas.
Mesmo sob pressão de modelos supranacionais, há uma consciência histórica que atua como freio ontológico à ficcionalização fiscal.
4.3 Estados Unidos: da comunidade revelada à comunidade projetada
Os Estados Unidos oferecem um caso misto e historicamente dinâmico.
No período formativo, a comunidade americana foi amplamente revelada:
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autogoverno local;
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forte relação entre trabalho, propriedade e dever cívico;
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orçamento público limitado pela realidade produtiva.
Com o tempo, especialmente no século XX, o país passou a incorporar elementos de comunidade imaginada, visíveis em:
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déficits federais permanentes;
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expansão de programas universais desvinculados de base produtiva imediata;
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financeirização do Estado como mecanismo de adiamento do ajuste.
O orçamento americano tornou-se o campo de tensão entre a herança revelada e a projeção ideológica contemporânea.
5. O paralelo contábil: gasto imaginado versus gasto revelado
A distinção entre comunidade imaginada e revelada encontra analogia direta na contabilidade.
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Imaginar um gasto para “sentir economia” é exercício psicológico.
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Registrar um gasto juridicamente projetado e posteriormente cancelado é reconhecimento de realidade.
O segundo caso envolve um vir-a-ser interrompido, que deixa rastro mensurável. Trata-se de realidade negativa revelada, não de ficção.
Estados fundados em comunidades imaginadas operam como quem contabiliza desejos.
Estados enraizados em comunidades reveladas aprendem com custos evitados, perdas reais e limites impostos.
Conclusão
Pode-se afirmar, com precisão conceitual:
Comunidades imaginadas exigem orçamentos ficcionais para sobreviver; comunidades reveladas só subsistem mediante orçamentos verdadeiros.
O orçamento público não é neutro: ele revela se o Estado governa segundo a realidade ou segundo narrativas. Ele separa promessa de responsabilidade, imaginação de reconhecimento, projeção de verdade.
Bibliografia comentada
Anderson, Benedict – Imagined Communities
Obra fundamental para compreender como narrativas simbólicas estruturam comunidades políticas modernas. Essencial para o diagnóstico, insuficiente como fundamento normativo.
Royce, Josiah – The Philosophy of Loyalty
Oferece o conceito de lealdade como fundamento real da comunidade, antecipando a noção de comunidade revelada pela ação e pelo sacrifício.
Aristóteles – Metafísica e Ética a Nicômaco
Fundamental para a distinção entre potência, ato e privação, indispensável à compreensão do “vir-a-ser” frustrado.
Schumpeter, Joseph – Capitalism, Socialism and Democracy
Analisa a relação entre Estado, finanças públicas e legitimidade política, especialmente no contexto do endividamento.
Leão XIII – Rerum Novarum
Oferece uma concepção moral do capital e do trabalho acumulado no tempo, essencial para a crítica à ficcionalização econômica.
Olavo de Carvalho – O Jardim das Aflições
Introduz a noção de consciência histórica como critério de realidade política, relevante para a distinção entre narrativa e verdade.
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