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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Necrópole: a imprensa como máquina de distanásia política da república brasileira

Em tempos de profunda desconfiança institucional, as metáforas tornam-se instrumentos privilegiados para revelar o que permanece oculto sob a superfície dos fatos. Chamar o jornal Metrópole de “necrópole” não é um mero jogo linguístico: é um diagnóstico, uma radiografia simbólica do modo como parte da imprensa brasileira se relaciona com o poder político. A metáfora aponta para a fusão entre morte e conservação: algo que já não possui vitalidade própria, mas é mantido artificialmente — e a altíssimo custo — como se ainda tivesse função orgânica no corpo social.

A crítica não se dirige apenas ao jornal em si, mas ao mecanismo que o sustenta. Trata-se de uma estrutura que vive não da confiança popular, nem da relevância jornalística, mas do fluxo contínuo de recursos públicos destinados à publicidade governamental. É uma máquina de propaganda cuja sobrevivência depende de gastos faraônicos, gastos esses que convertem o erário em fluido vital capaz de manter artificialmente um organismo que, pela ordem natural, já deveria ter sido descontinuado. A “necrópole” é, assim, menos o jornal e mais o sistema que ele integra.

I. Um jornal morto que respira por aparelhos

O jornalismo, em sua essência, é vocação para a verdade e serviço ao bem comum. Quando perde essa função, sua morte não é apenas simbólica — é funcional. Essa morte, entretanto, não significa o desaparecimento da estrutura física: prédios, redações e logotipos continuam existindo. O que morre é o jornalismo enquanto função vital, enquanto célula que oxigena o organismo social.

A imprensa que se sustenta artificialmente por verbas governamentais vive num estado que a bioética chamaria de distanásia: prolongamento injustificável da vida por meios artificiais. No campo político, isso se traduziu em distanásia institucional: manter viva a aparência de um jornalismo que já não cumpre sua função, mas serve de suporte discursivo para a manutenção do regime.

Não é sem razão que a metáfora médica se revela adequada. Na distanásia, máquinas assumem funções que o corpo já não consegue realizar. Na necrópole midiática, a máquina estatal — através de verbas públicas — assume funções que o mercado e a sociedade já não sustentam.

II. A República ilegítima e sua necessidade de propaganda

A segunda parte da metáfora é ainda mais profunda. Se a imprensa precisa de artifícios para se manter viva, o regime político que ela protege precisa de instrumentos ainda mais intensos para sustentar sua própria legitimidade. A República brasileira, nascida de um golpe militar em 1889, nunca foi fruto de um pacto social nem de consentimento popular. Sua legitimidade sempre foi deficitária, e sua sobrevivência dependeu constante e crescentemente do aparato estatal, inclusive do aparato simbólico que forma e molda a percepção pública.

Nesse contexto, a imprensa que deveria fiscalizar o Estado tornou-se, em muitos casos, parte da engrenagem de sua propaganda. Não se trata apenas do vício moderno da “imprensa governista”, mas de algo mais profundo: uma fusão estrutural entre comunicação e regime, em que ambos se legitimam reciprocamente.

A República, ao não conseguir se enraizar no imaginário nacional como forma legítima de governo, construiu para si um sistema de conservantismo político: conservar artificialmente o que se tornou inviável. É o conservantismo ao avesso: não a conservação prudente do bem recebido das gerações passadas, mas a conservação patológica de uma forma política que nunca amadureceu.

III. Conservantismo e manutenção do cadáver institucional

O termo “conservantismo”, usado aqui de modo crítico, não tem relação com o conservadorismo clássico de Burke ou Tocqueville, que preserva a continuidade histórica e a ordem natural. Pelo contrário, trata-se de conservar o que já morreu: uma república cuja legitimidade se perdeu e cuja vitalidade institucional deixou de existir, mas que permanece existindo como simulacro.

A necrópole midiática é uma peça desse maquinário, desse aprelho ideológico de Estado. Ela atua como sala de manutenção simbólica do cadáver republicano, difundindo narrativas que mantêm a impressão de normalidade, de funcionalidade, de legitimidade. Assim como na distanásia médica máquinas substituem funções vitais, aqui manchetes, editoriais e campanhas substituem a vitalidade moral, política e espiritual que a República deveria ter por si mesma.

IV. A distanásia política como categoria analítica

A imagem ganha ainda mais força quando interpretada como categoria científica. A distanásia política é o processo pelo qual um regime moribundo mantém-se funcional apenas através de intervenções extraordinárias que drenam recursos e produzem sofrimento social contínuo. A distanásia prolonga a agonia, mas não restaura a saúde.

Aplicada ao contexto brasileiro, ela explica:

  • o uso intensivo de propaganda estatal;

  • a dependência da imprensa de recursos públicos;

  • a deterioração da credibilidade jornalística;

  • a perpetuação de um regime que nunca se legitimou plenamente.

A distanásia é, ao mesmo tempo, sintoma e mecanismo: revela o estado terminal do regime e atua para prolongá-lo artificialmente.

V. Conclusão: entre a verdade e a conservação do cadáver

A metáfora da necrópole revela que o problema não é apenas comunicacional, mas civilizacional. Uma imprensa que vive de publicidade estatal está morta para a verdade. E um regime que precisa de uma imprensa morta para se manter vivo está morto para a legitimidade.

A alternativa a esse maquinário não é destruir o que resta, mas buscar, na verdade — fundamento da verdadeira liberdade — uma regeneração que só pode acontecer quando se permite que o que está morto finalmente seja sepultado. Só depois disso, como nas metáforas cristãs que sustentam toda a tradição ocidental, pode haver ressurreição.

Bibliografia Comentada

1. Jacques Ellul — Propaganda: The Formation of Men’s Attitudes

Ellul realiza a análise mais profunda e sistemática da propaganda na modernidade. Ele demonstra como, em regimes aparentemente democráticos, a propaganda se torna ainda mais necessária para compensar a perda de legitimidade. Sua distinção entre “propaganda sociológica” e “propaganda política” ajuda a compreender como veículos de imprensa podem se tornar instrumentos de manutenção de regimes enfraquecidos. Sua relevância para o conceito de “distanásia política” é direta: quando o pacto social se dissolve, a propaganda ocupa o lugar da vitalidade política.

2. Christopher Lasch — The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy

Lasch descreve a ruptura entre elites e povo, bem como a perda de enraizamento comunitário e institucional. Ele mostra como a elite intelectual e midiática forma um “clero secular” que legitima estruturas políticas decadentes. Sua análise fornece base para compreender a imprensa como órgão conservante de um regime moribundo — um ponto central do artigo.

3. Edmund Burke — Reflections on the Revolution in France

Burke critica a Revolução Francesa por destruir a continuidade histórica e criar, no lugar dela, um regime artificial, sem legitimidade orgânica. Seu conceito de “prudência” e de “ordem natural” permite distinguir entre conservadorismo verdadeiro e “conservantismo” patológico — a conservação de cadáveres institucionais, como descrito no artigo. Burke é fundamental como contraponto filosófico.

4. Alexis de Tocqueville — Democracy in America

Tocqueville analisa a legitimidade democrática a partir dos costumes e da vitalidade cívica. Nos trechos em que fala sobre a imprensa, a liberdade e a associação civil, deixa claro que um sistema político sem enraizamento moral tende a produzir estruturas artificiais de legitimação. É leitura essencial para entender por que a República brasileira — nascida sem pacto — necessita de propaganda intensiva.

5. José Murilo de Carvalho — A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil

Obra fundamental para compreender a ilegitimidade simbólica da República brasileira. Carvalho demonstra que o golpe de 1889 não produziu imaginário, símbolos ou adesão popular. Liga-se diretamente à tese do artigo: se o regime nasceu morto no imaginário nacional, depende até hoje de artifícios simbólicos, propaganda e narrativas jornalísticas para se manter vivo.

6. João Camilo de Oliveira Torres — A Democracia Coroada

Apresenta a tese de que a Monarquia Constitucional brasileira possuía legitimidade orgânica e que a República foi uma ruptura traumática, instável e permanentemente justificadora de si mesma. Torres explica como, após 1889, os governos republicanos precisaram criar mecanismos de artificialização da legitimidade — o que converge com a ideia de distanásia política presente no artigo.

7. Gustave Le Bon — Psychologie des Foules

Le Bon mostra como as massas podem ser manipuladas por discursos simples, repetitivos e emocionalmente carregados. Seu estudo fornece uma base psicológica para entender por que jornais dependentes de publicidade estatal recorrem a narrativas estabilizadoras e esquemas de propaganda para proteger o regime que os financia.

8. Neil Postman — Amusing Ourselves to Death

Postman demonstra como o meio de comunicação molda o conteúdo que transmite. A tese central — de que a televisão transformou o discurso público em entretenimento — ajuda a entender como parte da imprensa contemporânea se converteu em espetáculo político e propaganda, perdendo vitalidade jornalística. Sua contribuição ilumina a morte funcional da imprensa descrita no artigo.

9. Olavo de Carvalho — O Jardim das Aflições

Nesta obra, Olavo expõe a ideia de que a modernidade constrói aparelhos simbólicos e burocráticos que tentam conservar regimes já mortos espiritualmente. Sua análise da crise da legitimidade política e da dissolução das instituições fornece uma estrutura conceitual ampla para compreender a metáfora da “necrópole”. É especialmente útil para entender a crítica à República como forma política ilegítima.

10. Hannah Arendt — Between Past and Future

Arendt discute a crise da autoridade e a perda da tradição como fundamento do político. Mostra como regimes sem ancoragem no passado precisam compensar sua fragilidade com propaganda, controle narrativo e mecanismos artificiais de legitimação. É uma das bases para a análise da morte institucional e da conservação artificial do regime.

11. Byung-Chul Han — Society of Transparency e The Burnout Society

Han examina a exaustão da sociedade contemporânea e o colapso das narrativas. Sua crítica à “positividade tóxica” e ao excesso de transparência pode ser relida aqui como a necessidade de aparências, performances e manutenção superficial de estruturas vazias — um paralelo direto com a imprensa que vive de publicidade estatal.

12. Roger Scruton — How to Be a Conservative

Scruton distingue o conservadorismo sério — que reconhece formas de vida orgânicas — da mera reprodução de estruturas sem alma. Essa distinção é chave para compreender a crítica central: não se trata de conservar o passado, mas de conservar um cadáver institucional. Scruton oferece uma base conceitual para separar conservação legítima de conservantismo patológico. 

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