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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A geopolítica da pan-ideia: de Coudenhove-Kalergi a Karl Haushofer e a continuidade na União Europeia

A história da geopolítica europeia no século XX apresenta dois movimentos intelectuais que, embora distintos em origem e propósito, convergem na formulação de projetos continentais de larga escala: o pan-europeísmo de Richard von Coudenhove-Kalergi e a “geopolítica das pan-regiões” de Karl Haushofer. Ambos emergem de um contexto comum — o colapso do equilíbrio europeu após a Primeira Guerra Mundial — e respondem a uma necessidade sentida na Europa Central de reorganizar o espaço continental diante da ascensão simultânea dos Estados Unidos e da União Soviética.

Embora partam de motivações diferentes, é possível identificar linhas de continuidade intelectual que culminam, em termos institucionais, na configuração da União Europeia, especialmente enquanto projeto de integração continental e de construção de um grande espaço político-econômico.

Este artigo examina:

  1. A ideia de Pan-Europa em Coudenhove-Kalergi;

  2. A geopolítica das pan-regiões de Karl Haushofer — a “geopolítica da pan-ideia”;

  3. As convergências estruturais entre esses projetos;

  4. A União Europeia como expressão moderna de uma tradição geopolítica germânica;

  5. Uma avaliação crítica da tese da continuidade.

1. Coudenhove-Kalergi e o ideal de Pan-Europa

Richard von Coudenhove-Kalergi publicou Pan-Europa em 1923, inaugurando o que posteriormente seria um dos primeiros movimentos organizados europeístas. Seu objetivo era impedir a decadência do continente, que perdera sua centralidade global após a Primeira Guerra Mundial, propondo:

  • Uma união política e econômica dos países europeus;

  • Uma aliança de segurança comum contra pressões externas (Rússia soviética e EUA emergente);

  • A substituição da lógica de rivalidades nacionais por uma política continental;

  • A formação de um espaço civilizacional coerente, fundado na herança greco-romana, cristã e iluminista.

Coudenhove via a Europa como “uma comunidade de destino”, cuja sobrevivência dependeria da superação do sistema westfaliano. Seu projeto era normativo, com forte conteúdo ético e civilizacional, e de natureza supranacional.

2. Karl Haushofer e a geopolítica da pan-ideia

Karl Haushofer, general e geopolítico alemão, desenvolveu nos anos 1920 e 1930 a teoria das pan-regiões (Pan-Ideen). O mundo, segundo ele, tenderia a organizar-se em grandes blocos autossuficientes, articulados em torno de potências centrais:

  • Pan-América: hegemonizada pelos EUA;

  • Pan-Europa–África: hegemonizada pela Alemanha;

  • Pan-Ásia: hegemonizada pelo Japão;

  • Pan-Rússia: o espaço da URSS;

  • Eventualmente, uma pan-região indo-oceânica.

A lógica era essencialmente estratégica, não moral: tratava-se de maximizar o poder nacional por meio de arranjos regionais. A Alemanha, potência derrotada em 1918, deveria encontrar seu Lebensraum geopolítico não por expansionismo territorial clássico, mas pela estruturação de um bloco continental sob sua liderança.

O ponto central da geopolítica de Haushofer é a defesa do grande espaço (Großraum) como unidade essencial da competição global. Nesse contexto, a “pan-ideia” não é um ideal normativo, mas uma técnica de poder.

3. Convergências e diferenças entre Kalergi e Haushofer

Convergências estruturais:

  1. Ambos rejeitam a Europa fragmentada e propõem uma reorganização continental.

  2. Ambos partem da decadência europeia do pós-1918, mas propõem respostas distintas.

  3. Ambos visam proteger a Europa frente às superpotências externas.

  4. Ambos concebem a Europa como unidade civilizacional relevante.

Diferenças fundamentais:

  • Kalergi busca integração voluntária e pacífica, fundada em princípios humanistas.

  • Haushofer busca consolidação de poder, fundada no cálculo estratégico e militar.

  • O pan-europeísmo é cosmopolita, enquanto a pan-geopolítica é imperial e nacionalista.

  • Kalergi quer democracia supranacional; Haushofer quer blocos hierárquicos hegemonizados.

Apesar das diferenças, a ideia de “Europa como bloco” é comum.

4. A União Europeia como continuidade da tradição geopolítica alemã

A afirmação de que a União Europeia representa a continuidade da tradição alemã tem fundamento parcial, desde que corretamente qualificado.

Há três eixos de continuidade:

(1) A estrutura de grande espaço (Großraum)

A UE se constitui como um grande mercado único, com políticas comuns de concorrência, agricultura, comércio e moeda (zona do euro). Este modelo corresponde à visão de grande espaço europeu, ainda que sob fundamentos democráticos.

(2) O papel central da Alemanha

Desde o Tratado de Maastricht, a Alemanha é a principal potência econômica e normativo-institucional da UE. Sua influência no Banco Central Europeu, nas regras fiscais e nos padrões industriais demonstra sua centralidade.

(3) A lógica de autossuficiência relativa

A agenda contemporânea da UE — autonomia estratégica, reindustrialização, transição energética endógena, defesa comum — corresponde a uma busca por autossuficiência que ecoa a lógica das pan-regiões.

Contudo:

  • A União Europeia rejeita o imperialismo e a hierarquização de poder defendidos por Haushofer;

  • É um projeto de integração supranacional voluntária;

  • Sua base filosófica é mais próxima de Coudenhove-Kalergi, Monnet e Schuman.

Portanto, a UE é uma síntese: ela realiza estruturalmente o conceito de grande espaço presente em Haushofer, mas moral e institucionalmente segue Kalergi.

5. Avaliação crítica

Ao dizer que a UE é um “exemplo da continuidade da tradição geopolítica alemã”, a afirmação é defensável desde que se distinga:

  • Continuidade estrutural (sim: grande espaço, bloco continental, protagonismo alemão);

  • Continuidade normativa (não: Haushofer sustentava um projeto expansionista e autoritário);

  • Continuidade intelectual indireta (sim: muitos debates geopolíticos da República de Weimar ecoam no pensamento europeu pós-guerra).

Em realidade, a UE é mais próxima do pan-europeísmo de Kalergi, mas executada com a racionalidade geoeconômica da Alemanha do pós-guerra, o que cria paralelos indiretos com a tradição geopolítica alemã.

Conclusão

A Pan-Europa de Coudenhove-Kalergi e a geopolítica das pan-regiões de Karl Haushofer são expressões distintas de uma mesma intuição estratégica: a Europa fragmentada é inviável diante das grandes potências globais. A União Europeia, embora fundada em valores democráticos, de mercado e cooperação, opera estruturalmente como um grande espaço continental, articulado sob forte influência alemã.

Assim, é correto afirmar que existe uma linha de continuidade entre a tradição geopolítica alemã — especialmente na concepção de grandes espaços — e a atual estrutura da União Europeia, ainda que o conteúdo normativo da UE seja, em grande medida, herdeiro do ideal humanista de Coudenhove-Kalergi.

Bibliografia Comentada

1. Coudenhove-Kalergi, Richard von. Pan-Europa (1923).

Obra fundadora do movimento pan-europeísta. O autor apresenta a tese de que a Europa, fragmentada em Estados nacionais rivais, está condenada à decadência diante das novas superpotências emergentes. O livro propõe uma união política, econômica e militar do continente — ideia que influenciou estadistas no pós-guerra. Essencial para entender a matriz ética, normativa e civilizacional do projeto europeu contemporâneo.

2. Coudenhove-Kalergi, Richard von. Praktischer Idealismus (1925).

Nesta obra, Kalergi aprofunda sua visão filosófica sobre o destino da Europa e a formação de elites espirituais capazes de liderar o continente. Embora menos institucional que Pan-Europa, é fundamental para compreender o substrato antropológico e ético do pan-europeísmo, especialmente sua visão universalista e humanista, em contraste com a geopolítica de poder alemã.

3. Haushofer, Karl. Bausteine zur Geopolitik (1928).

Conjunto de ensaios que consolidam os fundamentos da geopolítica haushoferiana. Apresenta o conceito de grandes espaços (Großräume), a ideia das pan-regiões e a necessidade de autossuficiência continental. É a entrada principal para entender como Haushofer articulava estratégia, geografia e poder estatal.

4. Haushofer, Karl. Geopolitik der Pan-Ideen (1931).

Obra diretamente vinculada à “geopolítica da pan-ideia”. Haushofer descreve o mundo como dividido em grandes blocos liderados por potências centrais, defendendo um arranjo eurafricano sob hegemonia alemã. Fundamental para compreender como a noção de pan-região surge como resposta geopolítica da Alemanha à perda de território e prestígio após o Tratado de Versalhes.

5. Steiner, Zara. The Lights that Failed: European International History 1919–1933 (2005).

Estudo monumental sobre as relações internacionais europeias no período entre guerras. Esclarece o ambiente intelectual, diplomático e institucional que deu origem tanto ao pan-europeísmo quanto à geopolítica germânica. Ajuda a entender por que projetos continentais ganharam força e como o colapso da ordem europeia abriu espaço para soluções radicais.

6. Heffernan, Michael. The Meaning of Europe: Geography and Geopolitics (1998).

Análise geopolítica da construção do conceito de Europa. O autor examina as múltiplas tentativas — culturais, políticas e estratégicas — de definir e reorganizar o espaço europeu. Inclui discussão detalhada sobre o pensamento de Kalergi e Haushofer, bem como sobre a formação da União Europeia no pós-guerra.

7. Schuman, Robert. Pour l’Europe (1963).

Obra escrita por um dos “pais fundadores” da União Europeia. Apresenta os fundamentos políticos, filosóficos e morais da integração europeia do pós-guerra, com foco na superação definitiva das rivalidades continentais. Essencial para entender como as ideias pan-europeístas foram institucionalizadas num modelo democrático.

8. Monnet, Jean. Mémoires (1976).

Memórias do principal arquiteto institucional da integração europeia. Monnet descreve a construção metódica das Comunidades Europeias (CECA, CEE, Euratom). Suas reflexões confirmam a influência indireta do pan-europeísmo de Kalergi, mas sob lógica pragmática e incrementalista, mais próxima da geoeconomia alemã.

9. Gress, David. From Plato to NATO: The Idea of the West and Its Opponents (1998).

Exame histórico da ideia de Ocidente. Embora não centrado exclusivamente na geopolítica alemã, contextualiza a busca europeia por unidade e identidade civilizacional, mostrando como projetos como o de Kalergi e o de Haushofer respondem à longa tradição de definição do “Espaço Ocidental”.

10. Tooze, Adam. The Deluge: The Great War, America and the Remaking of the Global Order 1916–1931 (2014).

O autor demonstra como os EUA e a URSS emergem como potências sistêmicas no pós-Primeira Guerra Mundial, criando o cenário geopolítico que tanto Coudenhove-Kalergi quanto Haushofer buscavam enfrentar. A explicação macroestrutural aqui é crucial para entender a motivação por trás das pan-ideias.

11. Agnew, John. Geopolitics: Re-visioning World Politics (2003).

Obra teórica que contextualiza o surgimento e evolução das escolas geopolíticas. Inclui discussão crítica do determinismo territorial alemão e compara diferentes modelos de organização regional. Útil para avaliar a validade contemporânea das teses de Haushofer.

12. Zielonka, Jan. Europe as Empire: The Nature of the Enlarged European Union (2006).

Estudo original que interpreta a UE como uma nova forma de império — descentralizado, regulatório e multinível. Oferece um paralelo sofisticado entre a estrutura da UE e o conceito alemão de “grande espaço”, ainda que livre de sua carga autoritária. Excelente para entender a dimensão geopolítica da integração europeia contemporânea.

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