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sábado, 20 de dezembro de 2025

O governo Bolsonaro como ruína: notas para uma historiografia do futuro

Analisar o governo Bolsonaro sob a categoria de ruína é deslocar o debate do campo da disputa imediata para o terreno próprio da história. Ruínas não são acontecimentos em combustão, nem narrativas estabilizadas; são restos que sobreviveram ao incêndio do presente e que, justamente por isso, exigem um olhar paciente, comparativo e estrutural.

O verdadeiro incêndio é sempre o presente. É nele que as paixões se inflamam, que as categorias morais se absolutizam e que o juízo se subordina à urgência política. O passado recente, enquanto ainda serve de combustível para esse fogo, não pode ser tratado como objeto histórico propriamente dito. Apenas quando os fatos se tornam frios — quando já não queimam — é que passam a constituir ruínas.

1. A ruína como categoria historiográfica

A ruína não é sinônimo de decadência, tampouco de glória arruinada. Ela é uma forma temporal. Representa aquilo que perdeu sua função original, mas conservou materialidade suficiente para permitir reconstrução interpretativa.

No caso do governo Bolsonaro, essa ruína futura será composta por:

  • dados econômicos e administrativos já descolados da propaganda;

  • discursos e gestos que, fora do contexto emocional, revelam outra escala de sentido;

  • registros midiáticos contraditórios, hoje instrumentalizados, mas amanhã passíveis de cotejo;

  • silêncios significativos, tão eloquentes quanto os fatos narrados.

A historiografia do futuro não perguntará se o governo foi “bom” ou “mau”, mas o que ele foi possível de ser, dadas as circunstâncias herdadas e as resistências encontradas.

2. O intervalo temporal como condição do conhecimento

A exigência de vinte ou trinta anos para uma análise séria não é uma escolha ideológica, mas epistemológica. Sem esse intervalo, a investigação permanece capturada por três deformações típicas:

  1. a proximidade emocional dos atores;

  2. a dependência excessiva de fontes jornalísticas imediatas;

  3. a confusão entre juízo moral e juízo histórico.

Somente com o tempo é possível distinguir o episódico do estrutural, o acidental do necessário, o erro pontual da tendência profunda. A história, diferentemente da crônica, exige distância, não engajamento.

3. Imprensa tradicional, imprensa alternativa e o problema das fontes

Uma das tarefas centrais do historiador do futuro será reavaliar o estatuto das fontes do período. A imprensa tradicional não poderá ser tomada como espelho neutro da realidade, mas como ator político inserido em disputas de poder, interesses econômicos e alinhamentos ideológicos.

A imprensa alternativa, por sua vez, não deverá ser tratada como depositária automática da verdade, mas como arquivo marginal — um repositório de fatos, documentos e hipóteses que escaparam ao filtro institucional. Muitas dessas informações, desqualificadas à época sob o rótulo de “fake news”, só poderão ser avaliadas retrospectivamente, à luz da confirmação ou refutação empírica.

As ruínas históricas frequentemente se encontram nesses materiais rejeitados, pois a história não preserva apenas o que foi consagrado, mas também aquilo que resistiu à tentativa de apagamento.

4. O governo como sintoma histórico

O governo Bolsonaro dificilmente será compreendido, no futuro, como um fenômeno isolado. Ele tende a ser interpretado como sintoma: de crises acumuladas, de fraturas culturais, de esgotamento de modelos políticos e de desconfiança generalizada nas elites dirigentes.

Nesse sentido, a análise em termos de ruína permitirá deslocar o foco da figura pessoal do governante para o processo histórico mais amplo que o tornou possível. Ruínas não explicam apenas o que caiu, mas o tipo de terreno sobre o qual foi construído.

5. A função das ruínas: advertência e inteligibilidade

Por fim, as ruínas do governo Bolsonaro não servirão para culto nem para execração tardia. Sua função será advertir. Elas indicarão os limites da ação política em contextos de conflito permanente, os riscos da hipertrofia simbólica do poder e as consequências de uma sociedade que transforma o presente em tribunal absoluto.

A historiografia futura, se for digna desse nome, não buscará consolo moral, mas inteligibilidade. E é justamente por isso que ela só poderá começar quando o incêndio do presente tiver cessado.

Bibliografia comentada

Walter Benjamin

Sobre o conceito de história
Benjamin é fundamental para a noção de ruína como fragmento carregado de sentido histórico. Sua crítica ao progresso linear e sua valorização dos restos, dos vencidos e do que não foi integrado à narrativa oficial oferecem uma chave decisiva para compreender períodos politicamente traumáticos sem submissão ao discurso dos vencedores.

Reinhart Koselleck

Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos
Koselleck fornece o instrumental conceitual para pensar a distância entre experiência e expectativa. Sua análise do tempo histórico ajuda a compreender por que o presente inflacionado impede o juízo e por que certas categorias só se estabilizam retrospectivamente.

Fernand Braudel

Escritos sobre a história
Braudel é essencial para diferenciar o acontecimento da estrutura. Sua ênfase na longa duração permite situar o governo Bolsonaro como episódio inserido em processos econômicos, sociais e culturais mais amplos, evitando leituras personalistas ou moralizantes.

Hannah Arendt

Entre o passado e o futuro
Arendt oferece uma reflexão profunda sobre crise, tradição e ruptura. Sua análise do colapso das categorias interpretativas tradicionais ilumina o tipo de vazio simbólico no qual governos disruptivos emergem e são posteriormente mal compreendidos.

Eric Voegelin

Ordem e história
Voegelin contribui para a compreensão dos fenômenos políticos como expressões de desordem espiritual e simbólica. Sua crítica às ideologias modernas é útil para analisar tanto a demonização quanto a sacralização de figuras políticas.

José Murilo de Carvalho

Cidadania no Brasil: o longo caminho
Autor brasileiro fundamental para situar o governo Bolsonaro na história das deficiências estruturais da cidadania e da cultura política nacional, evitando leituras excepcionalistas.

Raymundo Faoro

Os donos do poder
Faoro fornece a base para compreender a permanência de estruturas de poder e mentalidades patrimonialistas que atravessam regimes e governos, permitindo analisar Bolsonaro não como ruptura absoluta, mas como expressão de continuidades profundas.

Zdzisław Krasnodębski

Democracy, Nationalism and Modernity
Autor polonês relevante para compreender a tensão entre democracia liberal, identidade nacional e modernidade tardia, oferecendo paralelos úteis para análises comparadas fora do eixo anglo-americano.

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