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sábado, 20 de dezembro de 2025

O cuidado com os livros como critério objetivo de seriedade

1. Introdução: o livro como índice de caráter

Na arte de conhecer alguém, há sinais que não se prestam à dissimulação prolongada. Um desses sinais é a maneira como uma pessoa cuida de seus livros. Não se trata de preciosismo estético nem de fetichismo cultural, mas de um critério objetivo de avaliação moral e civilizatória. O livro, enquanto bem que exige tempo, silêncio, disciplina e fidelidade à verdade, funciona como um revelador do habitus daquele que o possui. Quem o conserva demonstra reconhecer que certos bens não existem para o consumo imediato, mas para a transmissão responsável.

Essa constatação simples conduz a uma reflexão mais profunda sobre a natureza dos livros, a noção de bem público e a verdadeira ideia de posse.

2. Livros como bens civilizatórios

Os livros não são bens comuns como quaisquer outros. Eles condensam trabalho intelectual acumulado ao longo de gerações, preservam experiências humanas decisivas e veiculam verdades que não pertencem a um indivíduo isolado. Por essa razão, podem ser corretamente definidos como bens civilizatórios.

Diferentemente de bens puramente privados — cujo valor se esgota no uso exclusivo —, os livros possuem uma função pública intrínseca. Mesmo quando juridicamente pertencem a alguém, eles servem a algo maior: a continuidade da cultura, da linguagem e da memória histórica. Destruir, negligenciar ou tratar um livro como descartável é, nesse sentido, um atentado simbólico contra a própria civilização.

3. Bem público não-estatal e a contribuição de Bresser-Pereira

A classificação dos livros como bens públicos não implica, necessariamente, sua estatização. Aqui é fundamental a distinção proposta por Luiz Carlos Bresser-Pereira entre bens públicos estatais e bens públicos pertencentes a uma coletividade não-estatal — o povo.

Os livros se inserem claramente nessa segunda categoria. Eles pertencem ao povo enquanto comunidade histórica e cultural, não ao Estado enquanto aparato burocrático. O Estado pode protegê-los, incentivá-los ou regulá-los, mas não é seu proprietário legítimo em sentido substancial. Essa distinção evita dois erros simétricos:

  • o individualismo possessivo, que reduz o livro a mercadoria;

  • o coletivismo estatal, que o transforma em instrumento ideológico.

O livro permanece público porque serve ao bem comum, mas não estatal porque sua custódia depende antes de uma ética compartilhada do que de coerção administrativa.

4. A verdadeira posse: participação e fidelidade

Nesse contexto, a noção clássica de posse meramente jurídica revela-se insuficiente. A verdadeira posse de um bem civilizatório não se define pela detenção física nem pelo título formal, mas pela participação responsável em seu sentido.

Possui verdadeiramente um livro aquele que:

  • o conserva;

  • o lê com seriedade;

  • o respeita como herança recebida;

  • e o transmite sem o corromper.

Essa forma de posse é comunitária por natureza. Ela se realiza no interior de um conjunto de pessoas que amam e rejeitam as mesmas coisas, isto é, que compartilham critérios objetivos de valor. Sem essa comunhão de sentido, o livro se torna um objeto mudo, quando não um mero adereço decorativo.

5. Cristo como fundamento da comunidade de sentido

O senhor introduz, com precisão, o elemento decisivo: o fundamento cristológico dessa comunidade. Não se trata de qualquer coletividade cultural abstrata, mas de uma comunhão enraizada em Cristo, entendido não apenas como referência devocional, mas como princípio ordenador da verdade, do bem e da vida concreta.

Amar e rejeitar as mesmas coisas “tendo por Cristo fundamento” significa submeter o juízo cultural, intelectual e moral a um critério transcendente. Essa submissão impede tanto o relativismo quanto o sectarismo, pois ancora a vida comunitária em algo que não é produzido pelo consenso humano, mas recebido como dom.

6. Território, lar e santificação

A partir desse fundamento, o território deixa de ser mero espaço físico e passa a ser compreendido como lar. Um lar não se define apenas por ocupação, mas por cuidado, fidelidade e permanência. Tomar uma terra como lar em Cristo significa conformar a vida — intelectual, econômica, cultural e espiritual — ao Todo que vem de Deus naquela circunstância histórica concreta.

Nesse sentido, cuidar dos livros é um ato análogo a cuidar da terra: ambos são gestos de reconhecimento de uma ordem recebida. A santificação do território não ocorre por decretos ou slogans, mas por práticas quotidianas de fidelidade, entre as quais se inclui o zelo pelos bens civilizatórios.

7. O livro como sacramental civilizatório

Pode-se dizer, sem exagero, que o livro funciona como um sacramental civilizatório: um sinal visível de uma pertença invisível. Ele revela se uma comunidade está orientada para a transmissão ou para o consumo, para a herança ou para o descarte, para a verdade ou para a utilidade imediata.

Por isso, observar como alguém trata seus livros é observar, em miniatura, como essa pessoa se posiciona diante do tempo, da verdade e da responsabilidade. É um critério silencioso, mas profundamente revelador.

8. Conclusão

O cuidado com os livros não é um detalhe secundário da vida cultural; é um critério objetivo de seriedade pessoal e de saúde civilizatória. Ao compreendê-los como bens públicos não estatais, pertencentes a uma coletividade fundada em Cristo, supera-se tanto a lógica do mercado absoluto quanto a do controle estatal.

A verdadeira posse, nesse horizonte, é comunhão, fidelidade e transmissão. E a santificação de um território começa, muitas vezes, de forma discreta: na maneira como se abre, se lê, se guarda e se entrega um livro.

Bibliografia comentada

1. Bens públicos, povo e Estado

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Democracia, Estado Social e Reforma Gerencial.
Rio de Janeiro: FGV, 2017.
Comentário: Obra fundamental para a distinção entre bens públicos estatais e bens públicos pertencentes a coletividades não estatais. Bresser-Pereira fornece o instrumental conceitual que permite classificar os livros como bens públicos do povo, evitando tanto a mercantilização absoluta quanto a estatização cultural. Sua abordagem é decisiva para sustentar juridicamente a ideia de função pública sem tutela estatal direta.

OSTROM, Elinor. Governing the Commons.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
Comentário: Embora trate principalmente de recursos naturais, Ostrom demonstra que comunidades podem gerir bens comuns de forma responsável sem depender do Estado ou do mercado. A obra oferece base empírica e teórica para a noção de custódia comunitária aplicada, por analogia, aos bens civilizatórios como os livros. 

2. Livro, cultura e civilização

STEINER, George. Lições dos Mestres.
Lisboa: Gradiva, 2003.
Comentário: Steiner analisa a transmissão do conhecimento como relação ética entre mestre e discípulo. O livro aparece como elo material dessa transmissão. A obra reforça a ideia de que o cuidado com livros não é estética, mas responsabilidade civilizatória.

CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros.
Brasília: UnB, 1999.
Comentário: Chartier demonstra como o suporte material do livro influencia práticas culturais, leitura e autoridade intelectual. Essencial para compreender por que a negligência com o objeto-livro implica degradação simbólica da cultura.

SCRUTON, Roger. Cultura Conta.
São Paulo: É Realizações, 2014.
Comentário: Scruton defende a cultura como herança, não como produto descartável. Sua crítica à lógica do consumo cultural sustenta diretamente a tese de que o livro é um bem orientado à transmissão, não ao uso imediato.

3. Posse, propriedade e responsabilidade

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, II-II, q. 66.
Comentário: Tomás distingue propriedade privada e uso comum dos bens, afirmando que a posse implica dever moral de ordenação ao bem comum. É o fundamento clássico da ideia de que a verdadeira posse é responsabilidade, não mero domínio jurídico.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.
Comentário: A noção de hexis (disposição adquirida) é central para entender o cuidado com livros como sinal de caráter. Aristóteles fornece o arcabouço para a leitura do hábito como critério objetivo de virtude.

4. Comunidade, sentido e fidelidade

ROYCE, Josiah. A Filosofia da Lealdade.
São Paulo: É Realizações, 2019.
Comentário: Royce define comunidade como união de pessoas fiéis a uma causa comum no tempo. A obra é decisiva para a noção de “verdadeira posse” como participação numa comunidade de sentido, e não como apropriação individual.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2001.
Comentário: MacIntyre demonstra que práticas só sobrevivem em tradições vivas. O livro, enquanto prática cultural, depende de comunidades que compartilham critérios objetivos de valor — exatamente o ponto defendido no artigo.

5. Cristo, território e santificação da vida comum

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus.
Comentário: Agostinho fornece a matriz teológica para pensar o território não como fim último, mas como lugar de peregrinação ordenado a Deus. A distinção entre cidade terrena e cidade celeste fundamenta a noção de lar em Cristo sem idolatria política.

LEÃO XIII. Rerum Novarum.
Comentário: A encíclica estabelece a centralidade do trabalho, da propriedade responsável e da ordem moral objetiva. Oferece base doutrinal para compreender o capital — inclusive intelectual — como fruto de trabalho acumulado no tempo e orientado ao bem comum.

JOÃO PAULO II. Centesimus Annus.
Comentário: Desenvolve a noção de cultura como dimensão essencial da vida social e reafirma a primazia da pessoa e das comunidades intermediárias. Reforça a crítica tanto ao estatismo quanto ao individualismo possessivo.

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