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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

A assimetria moral entre quem diagnostica e quem conserva - sobre a verdade, a responsabilidade do que se diz e a impossibilidade de reconciliação sem reparação, sobretudo quando se conserva o que é conveniente, ainda que dissociado da verdade

Introdução

Toda análise séria da realidade presente — seja ela política, cultural, moral ou espiritual — implica um ato de responsabilidade que não se esgota no ato de falar ou escrever. Quando um autor formula um diagnóstico, ele não apenas organiza fatos ou interpreta fenômenos: ele se compromete com a verdade, ainda que essa verdade seja incômoda, impopular ou contrária às conveniências do seu tempo.

Este artigo parte da experiência de que o leitor ou o ouvinte contemporâneo, longe de ser um sujeito passivo ou ignorante, exerce uma forma ativa de seleção moral do conteúdo recebido. Tal seleção, quando orientada pelo critério da conveniência, ainda que dissociada da verdade, produz uma ruptura que não é meramente intelectual, mas moral e teológica. A partir dessa constatação, investigamos a assimetria existente entre quem diagnostica honestamente e quem conserva apenas o que lhe é útil, bem como as consequências dessa escolha para a possibilidade — ou impossibilidade — de reconciliação.

1. O diagnóstico como ato moral

Escrever um artigo ou publicar um vídeo com pretensão analítica não é um gesto neutro. Trata-se de um ato que pressupõe:

  1. um esforço de compreensão do real tal como ele é;

  2. uma ordenação racional dessa compreensão;

  3. uma disposição interior de não trair a verdade em favor de ganhos simbólicos, afetivos ou ideológicos.

Nesse sentido, o diagnóstico é inseparável da ética. Ele obriga o autor a responder não apenas perante seus leitores, mas perante a própria verdade que tenta enunciar. Como ensinava Santo Tomás de Aquino, a verdade é a adequação do intelecto à realidade (adaequatio intellectus et rei), e não a adequação da realidade aos desejos do sujeito.

2. O leitor onisciente e a responsabilidade pela recepção

O leitor e o ouvinte, por sua vez, não podem ser tratados como inocentes epistemológicos. Ao receberem uma análise clara, articulada e intelectualmente honesta, assumem responsabilidade pelo modo como a acolhem.

Chama-se aqui de onisciente não aquele que sabe tudo, mas aquele que:

  • teve acesso suficiente ao argumento;

  • compreendeu seu sentido geral;

  • dispõe de liberdade para aceitá-lo ou rejeitá-lo.

Quando esse leitor opta por conservar apenas aquilo que lhe é conveniente — fragmentando o discurso, relativizando sua coerência ou reinterpretando-o segundo predileções momentâneas — ele realiza um ato que não é neutro. Ele dissocia o conteúdo da verdade que o sustenta, substituindo o critério do real pelo critério da utilidade subjetiva.

3. Conservantismo como categoria moral

É necessário distinguir com precisão o conservadorismo legítimo, que preserva o que é verdadeiro e bom, do conservantismo, entendido aqui como uma disposição moral viciada.

O conservantismo caracteriza-se por:

  • preservar estruturas, crenças ou práticas apenas porque são convenientes;

  • rejeitar a verdade quando esta exige conversão ou renúncia;

  • simular fidelidade à ordem enquanto evita o juízo da realidade.

Nesse sentido, o conservantismo não é prudência, mas covardia moral; não é continuidade, mas imobilismo; não é tradição, mas apego ao confortável. Ele se opõe frontalmente à verdade, pois prefere a estabilidade da mentira à exigência do real. 

4. A assimetria do dano e o deslocamento teológico da falta

Quando um leitor ou ouvinte incorre nesse tipo de falta, o dano causado não se dirige primariamente ao autor. Ainda que o autor seja afetado secundariamente, a ofensa principal se dá contra a verdade.

Aqui ocorre um deslocamento fundamental: a falta não é apenas interpessoal, mas teológica. A verdade, no horizonte cristão, não é uma abstração, mas uma Pessoa — o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Recusar a verdade conscientemente é, portanto, mais do que errar: é faltar com Deus.

Por isso, o dano a ser reparado não se mede nos méritos do autor ofendido, mas nos méritos de Cristo. Nenhum pedido de desculpas formais, nenhuma cordialidade aparente, nenhum consenso superficial pode reparar uma falta que tem essa natureza.

5. A impossibilidade de reconciliação sem conversão

Diante disso, impõe-se uma conclusão difícil, mas necessária: não há reconciliação possível entre quem se mantém fiel à verdade e quem opta conscientemente pelo conservantismo.

A reconciliação exigiria:

  • reconhecimento da verdade recusada;

  • abandono das conveniências que motivaram a recusa;

  • conversão intelectual e moral.

Sem isso, qualquer tentativa de reconciliação é apenas estética, diplomática ou utilitária — isto é, mais uma forma de conservar o conveniente, ainda que dissociado da verdade. A verdade não se negocia; ela se acolhe ou se rejeita. E a rejeição tem consequências.

Conclusão

A crise contemporânea não é, em sua raiz, uma crise de informação, mas de responsabilidade moral perante a verdade. O conflito entre quem diagnostica honestamente e quem conserva o conveniente revela uma assimetria profunda: de um lado, a submissão ao real; de outro, a instrumentalização do discurso.

Enquanto a verdade continuar sendo tratada como matéria-prima para preferências subjetivas, a reconciliação permanecerá impossível. Pois só há comunhão onde há verdade, e só há verdade onde há disposição para sacrificar o conveniente.

Bibliografia comentada

AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Obra fundamental para compreender a relação entre verdade, interioridade e responsabilidade moral. Agostinho demonstra que a fuga da verdade é sempre uma fuga de Deus, ainda que disfarçada de racionalização.

AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica.
Especialmente as questões sobre a verdade, o intelecto e a vontade. Tomás fornece o arcabouço metafísico que permite distinguir erro involuntário de recusa moral da verdade.

NEWMAN, John Henry. A Grammar of Assent.
Essencial para compreender como o assentimento à verdade envolve não apenas a razão abstrata, mas a consciência moral. Newman é central para pensar a responsabilidade do leitor.

GUARDINI, Romano. O Fim dos Tempos Modernos.
Analisa a dissolução da responsabilidade pessoal em uma cultura que prefere estruturas confortáveis à verdade exigente. Oferece excelente base para criticar o conservantismo.

RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Verdade e Tolerância.
Ratzinger desmonta a ideia de que a verdade é incompatível com a convivência humana, mostrando que a verdadeira intolerância é a recusa do real.

PIEPER, Josef. Abuso da Linguagem, Abuso do Poder.
Obra curta e incisiva sobre como a linguagem pode ser instrumentalizada para conservar estruturas injustificáveis, tema diretamente relacionado ao conservantismo.

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