Introdução
Na modernidade tardia, o livro foi progressivamente reduzido a mercadoria fungível: algo que se compra, consome e descarta. Paralelamente, o Estado passou a se compreender como fundamento último da vida civil, tratando a terra, os bens e até a memória como realidades que lhe pertencem ontologicamente, e não apenas por administração. Contra esse duplo empobrecimento — cultural e político —, é possível formular uma concepção mais elevada do livro: não como simples objeto de troca, mas como bem honroso, cuja posse, uso e sucessão merecem publicidade, memória e compromisso.
Este artigo propõe que o livro, especialmente o livro de segunda mão, seja compreendido à semelhança de um bem singular, dotado de história própria, e que sua circulação possa ser acompanhada por registros privados e compromissos públicos, fundados nos méritos de Cristo. Não se trata de estatização, mas de civilização.
1. O livro e a diferença entre mercadoria e bem
Toda mercadoria é, por definição, fungível: pouco importa quem a produziu, quem a usou antes ou em que circunstâncias. O livro, contudo, resiste a essa lógica. Ainda que tecnicamente reproduzível, cada exemplar concreto carrega marcas irrepetíveis:
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a edição específica;
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o contexto histórico de sua publicação;
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anotações, sublinhados e dedicatórias;
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a cadeia de leitores que dele cuidaram ou o negligenciaram.
Esses elementos transformam o livro em um bem singular, ainda que pertença a uma espécie reproduzível. É nesse sentido que se pode afirmar, sem exagero, que livros são bens escassos: não por sua matéria, mas por sua história.
2. A livraria de segunda mão como instituição civil
A livraria de livros usados não é apenas um estabelecimento comercial; ela é um lugar de transição entre gerações. Ali, bens que já serviram a um homem passam a servir a outro, e essa passagem pode ocorrer de modo puramente casual ou de modo honroso.
A proposta de situar tal livraria próxima a um cartório é simbólica e prática. O cartório representa a publicidade do compromisso, a memória institucional e a continuidade jurídica. Ao aproximar o livro desse espaço, afirma-se que:
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a posse do livro implica responsabilidade;
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o cuidado com o livro pode ser assumido publicamente;
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a sucessão do livro não é indiferente.
Não se trata de transformar o cartório em fiscal da leitura, mas de utilizá-lo como testemunha civil de um compromisso moral.
3. Registro de livros e sucessão honrosa
Registrar um livro não equivale a submetê-lo ao Estado, mas a documentar sua história. Assim como famílias registram genealogias, cartas e memórias, podem registrar a circulação de determinados livros que tiveram papel formativo relevante.
Esse registro pode conter:
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identificação do exemplar;
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nomes dos possuidores sucessivos;
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datas aproximadas de posse;
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breves notas sobre o uso (estudo, ensino, tradução, apostolado).
O livro, assim, deixa de ser um objeto anônimo e passa a ser um testemunho material de uma cadeia de fidelidade.
4. Livro e imóvel: analogia e distinção
A analogia entre livro e imóvel é instrutiva, desde que corretamente delimitada. O imóvel é uma acessão construída sobre a terra, e o Estado moderno tende a tratar a terra como seu fundamento religioso implícito, razão pela qual multiplica cadastros, tributos e controles, chegando a imaginar um Cadastro Geral de Imóveis análogo ao CPF.
O livro, ao contrário, goza de imunidade tributária constitucional. Essa imunidade não é um favor, mas o reconhecimento de que o livro:
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antecede o Estado;
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forma consciências que podem resistir ao Estado;
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transmite verdades que o Estado não cria.
Registrar livros não é, portanto, submetê-los ao poder fiscal, mas afirmar um espaço de liberdade civil fora e acima do Estado.
5. Livro, memória e país como lar em Cristo
Um país não se torna lar apenas por fronteiras, leis ou arrecadação. Ele se torna lar quando homens compartilham fundamentos últimos: aquilo que amam e aquilo que rejeitam. Tomar o país como lar em Cristo, por Cristo e para Cristo exige mediações concretas — e os livros são uma dessas mediações.
Eles:
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preservam a verdade contra o esquecimento;
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formam a inteligência para a liberdade;
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criam continuidade entre gerações que não se conheceram pessoalmente.
Documentar a história de uso, posse e sucessão honrosa dos livros é afirmar que a cultura não nasce do acaso nem do Estado, mas da fidelidade concreta de homens ao longo do tempo.
Conclusão
A proposta de registrar livros, associar sua circulação a compromissos públicos e preservar sua memória não é excentricidade nem fetichismo cultural. Trata-se de uma resposta civilizada a duas patologias contemporâneas: a mercantilização absoluta da cultura e a pretensão totalizante do Estado.
O livro, quando bem cuidado, bem usado e honrosamente transmitido, torna-se mais do que um objeto: torna-se um elo visível entre a verdade, a memória e a comunidade. E é por esses elos, discretos e silenciosos, que um país pode, de fato, ser tomado como lar em Cristo.
Bibliografia Comentada
1. Fundamentos teológicos e civilizatórios
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus.
Agostinho fornece o arcabouço fundamental para distinguir entre a ordem temporal e a ordem última. A noção de duas cidades — uma fundada no amor a Deus, outra no amor desordenado de si — permite compreender por que bens culturais, como os livros, não podem ser reduzidos a instrumentos do Estado. O livro participa da Cidade de Deus enquanto veículo de verdade, mesmo quando circula na Cidade dos Homens.
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica (especialmente I-II e II-II).
Tomás oferece a base para entender a relação entre propriedade, uso e finalidade. A distinção entre domínio e uso, bem como a noção de ordenação dos bens ao bem comum, sustenta a ideia de posse responsável e sucessão honrosa, sem confundir isso com coletivismo ou estatismo.
JOÃO PAULO II. Memória e Identidade.
Nesta obra tardia, o Papa polonês reflete explicitamente sobre memória, cultura e identidade nacional. É particularmente relevante para a tese de que um país se constrói como lar não apenas por estruturas políticas, mas pela preservação consciente de sua herança espiritual e intelectual.
2. Filosofia da lealdade, memória e comunidade
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty.
Obra central para a compreensão da comunidade como realidade moral fundada na lealdade a uma causa que transcende o indivíduo. A circulação honrosa dos livros pode ser lida como uma prática concreta de lealdade intergeracional à verdade. Royce ajuda a pensar registros e compromissos não como burocracia, mas como fidelidade institucionalizada.
SCRUTON, Roger. How to Be a Conservative.
Scruton é decisivo para compreender o valor da herança, da continuidade e do cuidado com o que foi recebido. Sua crítica à cultura do descarte e à abstração estatal ilumina a defesa do livro como bem singular, portador de memória e não simples mercadoria intercambiável.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro.
Arendt oferece uma análise profunda da crise da tradição e da autoridade no mundo moderno. Sua reflexão ajuda a entender por que a perda da memória cultural enfraquece o espaço público e por que a transmissão de livros é também transmissão de mundo.
3. Livro, cultura escrita e formação da consciência
STEINER, George. Lições dos Mestres.
Steiner trata da relação entre mestre, discípulo e tradição escrita. O livro aparece como mediador dessa relação, carregando não apenas conteúdo, mas responsabilidade moral. A ideia de sucessão honrosa do livro dialoga diretamente com a ética da transmissão intelectual presente nessa obra.
MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura.
Manguel demonstra como a leitura sempre foi um ato situado historicamente, socialmente e até espacialmente. A obra reforça a tese de que livros carregam histórias concretas de uso e apropriação, legitimando a ideia de documentar sua circulação.
ILLICH, Ivan. Na Vinha do Texto.
Illich analisa a passagem da cultura oral para a cultura do texto e, posteriormente, para a cultura técnica. Sua crítica à desmaterialização do saber ajuda a compreender o valor do livro físico como suporte de memória e resistência à abstração totalizante.
4. Direito, Estado e limites do poder fiscal
LEÃO XIII. Rerum Novarum.
Embora voltada à questão social, a encíclica é fundamental para compreender a noção de propriedade como fruto do trabalho acumulado no tempo. A leitura proposta no artigo — que inclui o capital intelectual — encontra aqui sólido respaldo doutrinário.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 150, VI, “d”.
O dispositivo que consagra a imunidade tributária dos livros não deve ser lido como benefício fiscal, mas como reconhecimento constitucional de sua função civilizatória. É o fundamento jurídico positivo da distinção entre livro e outros bens patrimoniais.
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário.
Obra essencial para compreender o sentido das imunidades tributárias como limites materiais ao poder de tributar. Ajuda a sustentar juridicamente a tese de que a imunidade do livro expressa um espaço de liberdade civil fora da lógica arrecadatória.
5. Cultura, nação e resistência ao estatismo
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França.
Burke é central para a compreensão da sociedade como parceria entre vivos, mortos e não nascidos. Essa ideia fundamenta, no plano político-filosófico, a noção de sucessão honrosa dos bens culturais, entre eles os livros.
OLAVO DE CARVALHO. O Jardim das Aflições.
Independentemente de controvérsias, a obra é relevante pela crítica à perda da consciência histórica e à substituição da verdade pela administração técnica. O livro aparece como instrumento de resistência espiritual e intelectual contra a homogeneização moderna.
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