A política brasileira produz ruínas continuamente, mas não há ainda um espaço social ou institucional capaz de transformá-las plenamente em história. A diferença entre
1. Memória viva versus ruína histórica
A memória vive do presente. Ela é moldada por ressentimentos, vitórias, derrotas, símbolos e paixões. Diferentemente da história, que busca reconstrução crítica, a memória é instrumento de ação, não de compreensão.
No Brasil, esse fenômeno é exacerbado por décadas de política marcada por escândalos permanentes, promessas não cumpridas e ciclos eleitorais curtos. Cada período histórico deixa restos, mas esses restos raramente se tornam ruína fria: continuam sendo combustível para o incêndio presente, seja para demonização, seja para idolatria.
O governo Bolsonaro exemplifica isso com clareza: enquanto durou e mesmo após seu término, não pôde ser analisado como ruína, pois a memória viva o transformou em símbolo absoluto. O passado, assim, é disputado, contestado e mobilizado incessantemente.
2. Ressentimento como motor da política
O ressentimento coletivo é um elemento estrutural da vida política brasileira. Ele alimenta a memória viva, impedindo que os fatos se resfriem e se transformem em ruínas passíveis de exame.
Ressentimento não é apenas reação moral, mas instrumento de controle social: define inimigos, demarca campos de lealdade e legitima mobilizações. Quando o presente funciona como tribunal absoluto, os eventos passados não se tornam ruína histórica; eles permanecem como arma simbólica, incapazes de gerar aprendizagem objetiva.
O resultado é uma história que não pode ser escrita plenamente, e uma memória que não pode ser transformada em conhecimento crítico.
3. A impossibilidade de fechamento histórico
Fechamento histórico significa compreender o passado de modo integral e contextual, identificando continuidades, rupturas, estruturas e limitações. No Brasil, esse fechamento é continuamente frustrado por três fatores interligados:
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Polarização extrema: narrativas sobre governos e eventos são imediatamente absorvidas por conflitos morais ou ideológicos, impedindo avaliação neutra.
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Hipertrofia simbólica do presente: cada governo ou crise é transformado em catástrofe ou redenção, tornando impossível o distanciamento necessário.
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Instrumentalização do passado: fatos históricos são reinterpretados incessantemente para sustentar interesses políticos imediatos, criando uma espécie de “eterno presente” da disputa simbólica.
O governo Bolsonaro é exemplo paradigmático: suas ações e omissões são constantemente reavaliadas não para compreensão histórica, mas para mobilização do ressentimento ou legitimação ideológica.
4. Ruínas como resistência à instrumentalização
As ruínas históricas — fatos descolados do calor do presente — oferecem uma oportunidade de resistência a essa instrumentalização. Elas permitem que:
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fatos sejam cotejados de maneira crítica;
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decisões e eventos sejam compreendidos em contextos mais amplos;
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narrativas sejam reconstituídas a partir de evidências, e não de paixões.
No entanto, para que isso ocorra, é necessário esperar o resfriamento do incêndio presente. Apenas quando o governo Bolsonaro e seus predecessores forem ruínas, e não símbolos ativos, será possível iniciar uma historiografia rigorosa.
5. Memória, aprendizagem e advertência
A impossibilidade de fechamento histórico não significa que não haja aprendizado. Pelo contrário: a frustração desse fechamento revela limites institucionais, culturais e simbólicos da política brasileira. Ensina que:
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a memória inflamada impede o distanciamento necessário;
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ressentimentos estruturais dificultam a compreensão crítica;
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a história só emerge quando o presente cessa de ocupar o espaço interpretativo absoluto.
Portanto, o papel das ruínas é também pedagógico: não fornecem respostas consoladoras, mas mostram o terreno difícil em que a política nacional se realiza, e alertam sobre os perigos da instrumentalização perpétua do passado.
Conclusão
O Brasil é um país de ruínas ainda quentes. A memória e o ressentimento mantêm os incêndios do presente ativos, retardando a emergência da história como ciência crítica. O governo Bolsonaro, enquanto objeto recente e inflamado de disputa simbólica, apenas evidencia esse fenômeno estrutural: ele será plenamente compreendido apenas quando se transformar em ruína fria, sujeita à análise desapaixonada e contextualizada.
Enquanto isso, historiadores, intelectuais e cidadãos enfrentam o desafio de resistir à sedução do presente absoluto, esperando o tempo necessário para que as ruínas falem, para que a memória se transforme em história e para que o Brasil possa aprender com seus restos.
Bibliografia comentada
Walter Benjamin
Sobre o conceito de história
Benjamin é central para compreender ruína e memória. Seu conceito de “história dos vencidos” e sua valorização dos fragmentos como portadores de sentido ajudam a pensar períodos recentes como Bolsonaro, quando a memória inflamada ainda impede análise fria.
Reinhart Koselleck
Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos
Koselleck permite analisar a diferença entre experiência vivida e percepção retrospectiva, elucidando por que a memória inflamada impede o fechamento histórico e transforma o passado em disputa contínua.
Hannah Arendt
Entre o passado e o futuro
Arendt oferece ferramentas para pensar crise, ruptura e tradição. Sua reflexão sobre memória, julgamento e autoridade ilumina o problema da hipertrofia simbólica do presente na política brasileira.
José Murilo de Carvalho
Cidadania no Brasil: o longo caminho
Autor brasileiro fundamental para compreender os limites da institucionalidade e da cultura política no país, explicando por que o ressentimento se torna motor da política e dificulta o distanciamento histórico.
Raymundo Faoro
Os donos do poder
Faoro ajuda a entender a persistência de estruturas patrimonialistas e a dificuldade de rupturas efetivas, mesmo em governos que aparentam ruptura total, como o de Bolsonaro.
Zdzisław Krasnodębski
Democracy, Nationalism and Modernity
Autor polonês que oferece perspectiva comparativa sobre nacionalismo, democracia e crise de representação. Suas análises são úteis para entender como regimes recentes podem ser apropriados por narrativas emocionais antes que se tornem objeto histórico.
Boaventura de Sousa Santos
A crítica da razão indolente
Santos fornece instrumentos para pensar desigualdades estruturais e memória social, mostrando como setores da sociedade mantêm disputas simbólicas sobre o passado, dificultando o surgimento de ruínas compreensíveis.
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