Introdução
A crise contemporânea das instituições não se manifesta apenas pela ação explícita de forças revolucionárias, mas — de modo mais sutil e eficaz — pela degeneração interna das formas que deveriam conter a desordem. Nesse contexto, emerge um fenômeno que exige nome próprio: o conservantismo insensato. Trata-se de uma atitude que, sob o pretexto de conservar, abdica do juízo, da responsabilidade e da verdade, tornando-se funcionalmente cúmplice da dissolução civilizatória.
O presente artigo propõe uma análise desse conservantismo como forma impessoal de inimizade a Cristo, entendida não em chave personalista ou persecutória, mas segundo a tradição clássica que distingue rigorosamente entre pessoas e princípios, sujeitos e estruturas, pecadores e ordens do erro.
1. Conservantismo e conservadorismo: distinção necessária
É indispensável distinguir entre:
-
Conservadorismo em Cristo, que conserva porque julga, corrige e ordena segundo o Logos;
-
Conservantismo insensato, que conserva formas desvinculadas de sua finalidade, recusando-se a exercer o juízo por medo do conflito.
O primeiro é fiel à tradição viva; o segundo idolatra a estabilidade aparente. Enquanto o conservadorismo cristão aceita o custo da verdade — inclusive o da cruz —, o conservantismo insensato busca preservar o conforto institucional, ainda que isso exija tolerar a exceção, a injustiça e a mentira.
2. A infância do revolucionarismo: estar “à esquerda do pai”
O conservantismo insensato não é o oposto da revolução; é sua pré-condição psicológica e moral. Ao abdicar da autoridade legítima, da correção e do limite, ele cria o vácuo que a revolução ocupa.
Nesse sentido, pode-se dizer que ele está “à esquerda do pai”: recusa a função paterna de mediação entre força e lei, tradição e juízo. Confunde prudência com omissão e paz com anestesia moral. Assim, prepara o terreno para aquilo que depois diz temer.
3. Forma, exceção e traição da finalidade
A marca distintiva do conservantismo insensato é a separação entre forma e finalidade. Leis, cargos, ritos e procedimentos passam a ser tratados como fins em si mesmos, não como instrumentos ordenados ao bem comum.
Quando a forma é usada para:
-
evitar o juízo,
-
justificar a exceção,
-
proteger a irresponsabilidade,
ela deixa de conservar a ordem e passa a ocultar a desordem. A autoridade formal permanece, mas a autoridade real migra para fora das instituições, pois já não há correspondência entre poder e verdade.
4. Inimigos de Cristo: a necessidade da impessoalização
Na tradição cristã clássica, “inimigos de Cristo” não designa pessoas enquanto tais, mas princípios objetivos de negação do Logos. Cristo combate:
-
a mentira, não o mentiroso enquanto sujeito;
-
a hipocrisia institucional, não a biografia individual;
-
a lei usada como exceção, não a pessoa concreta passível de conversão.
Essa impessoalização é essencial para preservar:
-
a universalidade do juízo;
-
a possibilidade de conversão;
-
a submissão de todos — inclusive do crítico — ao mesmo critério de verdade.
O conservantismo insensato, enquanto lógica e estrutura de ação, pode ser legitimamente descrito como uma dessas formas impessoais de inimizade, pois conserva a aparência e rejeita a verdade que a fundamenta.
5. Conservar a dor de Cristo como critério público
“Conservar a dor de Cristo” não é sentimentalismo devocional, mas critério objetivo de discernimento. Significa recusar:
-
a paz falsa fundada na injustiça;
-
a neutralização do conflito entre verdade e mundo;
-
a redução da cruz a ornamento cultural.
A dor de Cristo recorda que a fidelidade ao Logos tem custo histórico e que nenhuma ordem é legítima se exige a suspensão do juízo para se manter. Onde a forma serve para evitar a cruz, ela já traiu sua finalidade.
6. Forma contra forma: a reversão teleológica dos instrumentos
Uma resposta adequada à crise não exige destruir as formas, mas restituí-las à sua finalidade. Usar instrumentos como registro público, compromisso formal, publicidade e memória jurídica não é subversão, mas reversão teleológica: obrigar a forma a testemunhar a verdade que ela deveria servir.
Nesse sentido, exigir compromissos escritos, verificáveis e publicamente cobrados expõe o conservantismo falso, que prefere a irresponsabilidade protegida pela vagueza. A forma deixa de ser álibi e torna-se prova.
Conclusão
A crise atual não é apenas política ou jurídica; é civilizatória e ontológica. Ela opõe Logos e simulacro, verdade e forma vazia, cruz e conforto. O conservantismo insensato, ao recusar o juízo e conservar apenas a aparência, revela-se não como defesa da ordem, mas como sua caricatura.
Enfrentar essa crise exige impessoalizar o conflito, restaurar a finalidade das formas e aceitar o custo da verdade. Somente assim o conservadorismo deixa de ser gestão da decadência e volta a ser, em Cristo, fidelidade ordenadora do mundo.
Bibliografia comentada
I. Direito natural, juízo e finalidade da forma
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica.
Especialmente I–II, qq. 90–97 (lei) e II–II, qq. 57–60 (justiça).
Fundamento clássico da distinção entre lei, justiça e finalidade. Tomás deixa claro que a lei só é legítima enquanto ordenada ao bem comum e conforme à razão. A separação entre forma legal e justiça material — criticada no artigo — é, aqui, explicitamente rejeitada.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.
Livros V (Justiça) e VI (Prudência).
Base da noção de juízo prudencial (phronesis) como virtude prática que precede e governa a aplicação da lei. Essencial para compreender a vereança como função real anterior ao cargo.
CÍCERO. De Legibus; De Officiis.
Formula a ideia de uma lei superior à vontade humana e anterior às instituições. Sua concepção de dever público fundamenta a crítica à autoridade que conserva a forma traindo a finalidade.
II. Forma, exceção e degeneração institucional
CARL SCHMITT. Teologia Política.
Apesar de seus problemas conhecidos, Schmitt é indispensável para compreender o conceito de exceção e o risco da soberania desvinculada de critérios objetivos. O artigo dialoga criticamente com Schmitt ao recusar a exceção como solução permanente.
GIORGIO AGAMBEN. Estado de Exceção.
Desenvolve, a partir de Schmitt, a tese da normalização da exceção. Útil como diagnóstico negativo: mostra o que acontece quando a forma jurídica passa a viver da suspensão da própria finalidade.
ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE. Estado, Constituição e Democracia.
A célebre tese de que o Estado liberal vive de pressupostos que ele mesmo não pode garantir ilumina o problema central do conservantismo insensato: conservar a forma enquanto consome silenciosamente seus fundamentos morais.
III. Conservadorismo, tradição e autoridade
EDMUND BURKE. Reflexões sobre a Revolução na França.
Burke distingue tradição viva de apego cego à forma. Sua crítica ao abstracionismo revolucionário é inseparável da crítica à conservação sem prudência — o que o aproxima do conservadorismo em Cristo, não do conservantismo inercial.
RUSSELL KIRK. The Conservative Mind.
Ajuda a mapear a tradição conservadora anglo-saxã e a distinguir conservação de princípios de simples apego institucional. Útil como contraste com a realidade brasileira analisada no artigo.
JOSIAH ROYCE. The Philosophy of Loyalty (A Filosofia da Lealdade).
Fundamental para compreender a lealdade como virtude moral objetiva, não emocional. A crítica à traição da finalidade institucional encontra aqui um arcabouço conceitual sólido.
IV. Tradição cristã, impessoalização e inimigos de Cristo
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus.
Obra-chave para a impessoalização do conflito entre verdade e mundo. Agostinho distingue ordens, amores e finalidades, evitando reduzir o mal a indivíduos isolados. Essencial para o tratamento correto da noção de “inimigos de Cristo”.
JOSEPH RATZINGER (BENTO XVI). Introdução ao Cristianismo; Europa: Hoje e Amanhã.
Desenvolve a oposição entre Logos e relativismo, fé e forma vazia. Sua crítica à burocratização da fé e da política dialoga diretamente com a noção de conservantismo insensato.
HENRI DE LUBAC. Catolicismo: Aspectos Sociais do Dogma.
Mostra como a fé cristã tem consequências públicas e civilizatórias, sem se reduzir a sentimentalismo. Fundamenta a ideia de “conservar a dor de Cristo” como critério objetivo e não devocional.
V. Autores luso-brasileiros (direito, política e forma)
ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO. Lei da Boa Razão.
Essencial para compreender a tradição jurídica portuguesa que articula direito natural e direito positivo sem iluminismo. Fundamenta a crítica à aplicação mecânica da lei e à exceção arbitrária.
MIGUEL REALE. Lições Preliminares de Direito.
Sua teoria tridimensional do direito (fato, valor e norma) é particularmente útil para demonstrar a insuficiência da forma normativa isolada.
OLAVO DE CARVALHO. O Jardim das Aflições.
Independentemente das controvérsias, a obra oferece uma crítica profunda à perda da hierarquia espiritual e à infantilização moral das elites. Relevante para a noção de conservantismo como recusa do juízo.
VI. Contribuições polonesas (ordem, responsabilidade e pessoa)
KAROL WOJTYŁA (JOÃO PAULO II). Pessoa e Ação.
Fundamenta filosoficamente a responsabilidade pessoal como núcleo da ação moral. Essencial para sustentar a ideia de compromisso público verificável.
RYSZARD LEGUTKO. The Demon in Democracy.
Crítica severa à homogeneização ideológica e à falsa neutralidade institucional. Dialoga diretamente com a denúncia da forma vazia e da conservação sem verdade.
ANDRZEJ ZOLL. Escritos sobre direito constitucional e responsabilidade pública.
Útil para contrastar a tradição jurídica polonesa — mais sensível à memória histórica e ao direito natural — com o formalismo brasileiro contemporâneo.
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