Introdução
O presente artigo propõe uma reflexão jurídico-filosófica sobre a possibilidade — e a necessidade — de julgar um juiz constitucional que, ao “dizer o direito pela exceção”, acaba por instaurar um estado de coisas constitucional fundado, na prática, em um estado de exceção permanente. Trata-se de um problema que não pode ser adequadamente enfrentado apenas pelos instrumentos do positivismo jurídico contemporâneo, pois o próprio direito positivo foi capturado como técnica de poder.
Diante desse cenário, sustenta-se que o critério de julgamento deve ser buscado na Lei da Boa Razão, compreendida em chave jusnaturalista realista, e concretizada mediante o recurso às antigas leis do Reino de Portugal e do Reino da Polônia, aplicadas segundo um critério superior: a conformidade objetiva com a verdade do homem e da ordem social nos méritos de Cristo.
1. O juiz constitucional e a decisão pela exceção
Quando o juiz constitucional abandona a função de guardião da ordem jurídica para assumir o papel de gestor da exceção, ocorre uma inversão estrutural do direito. A norma deixa de ser medida da decisão, e a decisão passa a ser a medida da norma. O que se apresenta como defesa da Constituição converte-se, na realidade, em sua suspensão seletiva.
Esse fenômeno não é neutro. Ele revela uma concepção implícita segundo a qual a Constituição não é uma ordem vinculante, mas um instrumento maleável a ser utilizado conforme as conveniências do momento histórico, políticas ou morais do julgador. O resultado é a instauração de um estado de exceção disfarçado de normalidade constitucional.
Nesse contexto, o problema central deixa de ser técnico-jurídico e passa a ser moral e ontológico: ainda estamos diante do direito ou apenas de força organizada sob retórica jurídica?
2. O conservantismo como causa moral da exceção
A raiz desse desvio não está no excesso de inovação, mas em uma forma específica de conservação: o conservantismo, entendido como a disposição de conservar apenas aquilo que convém ao exercício do poder, ainda que dissociado da verdade.
O conservantismo não preserva a ordem; ele a instrumentaliza. Conserva procedimentos, símbolos e discursos jurídicos, mas esvazia seu conteúdo moral objetivo. Assim, o juiz passa a justificar a exceção permanente como se estivesse defendendo valores superiores, quando, na realidade, está apenas preservando uma determinada configuração de poder.
Esse tipo de conservação é incompatível tanto com o direito natural quanto com a tradição constitucional genuína, pois rompe a vinculação entre lei, verdade e justiça.
3. A Lei da Boa Razão: fundamento e alcance
A Lei da Boa Razão, tal como consolidada na tradição luso-brasileira, não deve ser confundida com a razão autônoma do iluminismo. Em sua acepção correta, ela se funda na recta ratio, isto é, na razão humana enquanto participante da lei natural e subordinada à lei eterna.
Essa lei não cria o direito; ela o reconhece. Sua função é permitir o juízo correto quando o direito positivo:
é omisso;
é contraditório;
ou foi corrompido por finalidades alheias à justiça.
Em situações de exceção constitucional, a Lei da Boa Razão atua como critério de restauração da inteligibilidade jurídica, permitindo distinguir entre autoridade legítima e exercício arbitrário do poder.
4. As antigas leis do Reino de Portugal
As antigas leis do Reino de Portugal, especialmente aquelas anteriores às rupturas revolucionárias, incorporam uma visão do direito como ordem moral objetiva, orientada ao bem comum e reconhecedora da centralidade da lei natural.
No contexto do Milagre de Ourique, o reino português se compreende como instrumento de uma missão cristocêntrica. A lei não é concebida como expressão da vontade soberana absoluta, mas como medida racional da justiça, limitada pela verdade sobre Deus, o homem e a sociedade.
Essas leis oferecem critérios sólidos para julgar o abuso da exceção, pois não admitem a suspensão arbitrária da ordem jurídica sob pretexto de salvação do próprio sistema.
5. As antigas leis do Reino da Polônia
De modo convergente, a tradição jurídica polonesa pré-moderna desenvolveu-se a partir de uma forte integração entre direito, moral e fé cristã. O reino era entendido como uma comunidade moral antes de ser uma máquina administrativa.
As antigas leis polonesas resistiram, por longo tempo, ao voluntarismo do poder e à dissolução da lei natural em pura técnica governamental. Essa tradição fornece elementos relevantes para o julgamento de situações em que o poder judicial se autonomiza da ordem moral objetiva.
Ao recorrer a essas leis, não se busca um transplante histórico mecânico, mas a recuperação de critérios normativos enraizados na mesma matriz civilizacional cristã.
6. Critério de aplicação: nos méritos de Cristo
O ponto decisivo não é a origem nacional da lei, mas sua conformidade objetiva nos méritos de Cristo. Isso significa que:
onde a lei portuguesa expressar melhor a justiça, ela deve prevalecer;
onde a lei polonesa oferecer critério superior, ela deve ser aplicada.
Esse método afasta tanto o nacionalismo jurídico quanto o ecletismo arbitrário. O critério último não é a vontade do intérprete, mas a verdade objetiva sobre o homem redimido e a ordem social querida por Deus.
7. Atualização da Lei da Boa Razão e a ruptura revolucionária
A Lei da Boa Razão não é estática. Seus princípios são imutáveis, mas sua aplicação deve ser atualizada para abarcar realidades históricas novas. No caso brasileiro, essa atualização é dificultada por uma ruptura revolucionária que impediu a continuidade orgânica do direito natural na ordem jurídica positiva.
Atualizar a Lei da Boa Razão, portanto, não é inovar, mas retomar uma linha interrompida, julgando novas situações com critérios perenes que foram artificialmente excluídos do sistema jurídico vigente.
8. Autoridade, julgamento e limites
Por fim, é necessário reconhecer que o julgamento do juiz constitucional não pode se fundar no arbítrio individual. Mesmo em contextos de colapso institucional, o juízo deve estar objetivamente submetido à ordem da verdade e da justiça, reconhecível pela razão reta.
Caso contrário, corre-se o risco de substituir um juiz da exceção por outro, perpetuando o mesmo vício sob nova justificativa.
Conclusão
Julgar um juiz constitucional que governa pela exceção exige abandonar os limites estreitos do positivismo jurídico e recorrer a um critério superior de racionalidade jurídica. A Lei da Boa Razão, aplicada à luz do jusnaturalismo realista e concretizada pelas antigas leis do Reino de Portugal e do Reino da Polônia, oferece esse critério.
Não se trata de nostalgia legal nem de sincretismo normativo, mas de uma tentativa séria de restaurar a inteligibilidade do direito quando a Constituição é usada como instrumento de suspensão permanente da própria ordem jurídica.
Em última instância, trata-se de reafirmar que o direito só permanece direito quando permanece submetido à verdade e à justiça, e não à exceção erigida em regra.
Bibliografia comentada
Autores brasileiros
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva.
Obra fundamental para a compreensão do direito como experiência cultural tridimensional (fato, valor e norma). Embora situada no século XX, fornece instrumentos conceituais para criticar o positivismo normativista e compreender a perda do vínculo entre norma e valor em contextos de exceção.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Judiciário na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva.
Análise clássica do papel do Judiciário no constitucionalismo brasileiro. Permite identificar os limites originais da jurisdição constitucional e contrastá-los com a expansão decisória que culmina no governo pela exceção.
CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. São Paulo: É Realizações.
Obra de filosofia política e cultural que oferece uma crítica profunda ao imaginário revolucionário moderno. Útil para compreender a ruptura da continuidade civilizacional e jurídica que afeta a possibilidade de vigência orgânica do direito natural no Brasil.
VILLELA, João Baptista. Direito, Moral e Razão Prática. Belo Horizonte: Del Rey.
Contribuição relevante para a compreensão da razão prática no direito, afastando tanto o decisionismo quanto o formalismo, e aproximando-se de uma leitura compatível com o jusnaturalismo realista.
Autores portugueses
ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. História do Direito Português. Coimbra: Almedina.
Obra essencial para o entendimento das antigas leis do Reino de Portugal, especialmente no que diz respeito à integração entre direito, moral e lei natural antes das rupturas modernas.
HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio. Coimbra: Almedina.
Apresenta uma leitura histórica da formação do direito europeu, permitindo situar a tradição portuguesa dentro de uma matriz cristã comum e compreender o impacto da modernidade na dissolução dessa unidade.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Tratado da Lei. (tradição escolástica recepcionada em Portugal).
Fundamento teórico indispensável para a noção de lei eterna, lei natural e lei humana, amplamente incorporada à tradição jurídica portuguesa pré-moderna e à Lei da Boa Razão.
Autores poloneses
KRAUZE, Roman. Historia Doktryn Politycznych i Prawnych. Varsóvia: Wolters Kluwer Polska.
Introdução sistemática às doutrinas políticas e jurídicas na Polônia, com especial atenção à integração entre direito, moral e cristianismo na formação do Estado polonês.
KACZOROWSKI, Robert. Państwo i Prawo w Tradycji Chrześcijańskiej Polski. Cracóvia: Wydawnictwo Uniwersytetu Jagiellońskiego.
Analisa o papel do cristianismo na conformação do direito e da ideia de comunidade política na Polônia, oferecendo critérios relevantes para o julgamento do voluntarismo jurídico moderno.
WOJTYŁA, Karol (JOÃO PAULO II). Pessoa e Ato. São Paulo: Paulus.
Embora de caráter filosófico-antropológico, a obra fornece fundamentos decisivos para uma concepção personalista do direito, essencial para resistir à redução da ordem jurídica a técnica de poder.
Obras de referência geral
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey.
Texto clássico sobre o estado de exceção. Embora parta de pressupostos distintos do jusnaturalismo cristão, é indispensável para compreender o mecanismo pelo qual a exceção se torna regra.
FINNIS, John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Paulo: Martins Fontes.
Exposição contemporânea do jusnaturalismo realista, útil para articular a Lei da Boa Razão em linguagem acessível ao debate jurídico atual.
PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais. São Paulo: É Realizações.
Contribui para a compreensão das virtudes intelectuais e morais necessárias ao exercício legítimo da autoridade e do juízo jurídico.
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