É recorrente, no discurso liberal contemporâneo, a afirmação de que “imposto é roubo”. Tomada isoladamente, a frase tende a soar como slogan. No entanto, quando analisada à luz das práticas administrativas modernas, ela revela um fenômeno muito mais sofisticado e grave: a substituição da tributação explícita por mecanismos de extorsão indireta, capazes de neutralizar direitos constitucionais sem jamais declará-los revogados.
É nesse ponto que se manifesta o verdadeiro estado de compromisso do poder político contemporâneo: conservar o que é conveniente, ainda que dissociado da verdade.
1. César, Cristo e os limites da autoridade
O princípio evangélico de “dar a César o que é de César” nunca significou autorização para que César se tornasse maior do que Cristo por mérito próprio. A autoridade política é derivada, instrumental e limitada. Ela existe para servir à ordem justa, não para se autolegitimar por eficiência técnica ou engenhosidade administrativa.
Quando o poder civil passa a criar expedientes para contornar limites morais e constitucionais — ainda que mantendo intacta a forma da lei — ele deixa de exercer autoridade e passa a praticar tirania. A tirania moderna, contudo, raramente se apresenta como violência aberta: ela se manifesta por fluxos logísticos, regulamentos técnicos e procedimentos “neutros”.
2. Bastiat e aquilo que não se vê
Frédéric Bastiat advertiu que o verdadeiro custo das políticas públicas não está no que se vê, mas no que permanece oculto. No caso da imunidade tributária dos livros, o que se vê é a manutenção formal do texto constitucional: livros não são tributados.
O que não se vê é que:
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o frete internacional foi artificialmente encarecido;
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a centralização logística em Curitiba eliminou alternativas concorrenciais;
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o serviço postal tornou-se um monopólio coercitivo;
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o custo final imposto ao consumidor neutraliza, na prática, a imunidade garantida pela Constituição.
O tributo não aparece como imposto, mas como “frete”, “serviço”, “processamento” ou “despacho”. A forma muda; a substância permanece.
3. A Remessa Conforme como instrumento de neutralização de direitos
O programa Remessa Conforme é apresentado como mecanismo de simplificação e previsibilidade. Na realidade, ele institui um sistema de pré-validação fiscal e logística, no qual plataformas privadas assumem o papel de arrecadadoras e fiscalizadoras sob coerção regulatória.
O resultado concreto é:
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perda de autonomia do importador;
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politização do custo logístico;
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transformação de direitos constitucionais em concessões condicionadas.
Quando o custo do serviço acessório supera aquilo que seria pago como tributo direto, ocorre violação frontal do princípio segundo o qual o acessório segue a sorte do principal. Se o livro é imune, os meios necessários para sua circulação não podem ser utilizados para inviabilizá-lo.
4. O Estado de compromisso: conservar a conveniência, sacrificar a verdade
É precisamente nesses mecanismos de extorsão indireta que se esconde o verdadeiro estado de compromisso firmado pelo poder: não com a verdade, não com a justiça, mas com a conservação do conveniente.
Esse compromisso não se formaliza em lei; ele se manifesta como prática:
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a Constituição é preservada como símbolo;
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os direitos fundamentais sobrevivem como enunciados;
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sua eficácia é dissolvida por meios técnicos e administrativos.
A verdade passa a ser tolerada apenas enquanto não produz consequências. O critério decisório já não é “isso é justo?”, mas “isso é funcional?”. E funcional significa arrecadar, controlar e reduzir custo político.
5. A mentira estrutural e a dissolução da responsabilidade
Não há aqui uma mentira declarada, mas uma mentira institucionalizada. O Estado afirma respeitar a Constituição enquanto organiza a realidade material para torná-la irrelevante.
Essa forma de engano é mais grave do que a fraude aberta, porque:
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fragmenta a responsabilidade;
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elimina o agente claramente culpável;
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torna impossível apontar o momento exato da violação.
Ninguém “tributa livros”, mas todos participam do sistema que impede que livros circulem sem ônus confiscatório.
6. César autolegitimado e a tirania administrativa
Quando o poder governa por mecanismos indiretos, ele dispensa a justificação moral. A autoridade já não se mede pela conformidade ao justo, mas pela eficiência técnica. É nesse ponto que César tenta se legitimar por mérito próprio, independentemente da verdade.
A tirania moderna não precisa gritar nem reprimir abertamente. Ela se administra. Ela opera por formulários, centros logísticos e “procedimentos padrão”.
7. Conclusão: quando o frete vira imposto
Não é necessário chamar algo de imposto para que ele o seja em substância. Sempre que houver:
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compulsoriedade,
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ausência de alternativa,
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centralização forçada,
-
e finalidade arrecadatória ou de controle,
estamos diante de um tributo disfarçado.
Onde a verdade deixa de ser critério, a Constituição torna-se ornamento. Onde o direito vira ornamento, o frete vira imposto. E onde o imposto se disfarça de serviço, a tirania já não precisa se anunciar — ela apenas se mantém, conveniente, estável e dissociada da verdade.
Bibliografia comentada
1. Frédéric Bastiat
O que se vê e o que não se vê
Bastiat fornece o instrumento analítico central do artigo. Sua distinção entre efeitos imediatos e efeitos ocultos permite compreender como a imunidade tributária dos livros pode ser formalmente preservada enquanto é materialmente anulada por custos acessórios. A noção de “imposto invisível” encontra aqui sua matriz conceitual. Sem Bastiat, o fenômeno da extorsão indireta permaneceria invisível à análise econômica comum.
2. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Art. 150, VI, “d” (imunidade tributária dos livros)
O dispositivo constitucional não protege apenas contra a incidência nominal de tributos, mas contra qualquer mecanismo estatal que inviabilize a circulação do livro. A leitura sistemática do texto constitucional, combinada com princípios como razoabilidade, proporcionalidade e o postulado de que o acessório segue a sorte do principal, fundamenta juridicamente a tese de que fretes e serviços compulsórios podem assumir natureza tributária disfarçada.
3. Aliomar Baleeiro
Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar
Baleeiro é referência clássica para compreender que a imunidade tributária é uma garantia material, não meramente formal. Sua obra ajuda a demonstrar que o Estado não pode, por vias oblíquas, atingir aquilo que a Constituição explicitamente protege. A leitura de Baleeiro é essencial para desmascarar práticas administrativas que respeitam a letra da Constituição enquanto violam seu espírito.
4. Ricardo Lobo Torres
Tratado de Direito Financeiro e Tributário
Torres contribui para a compreensão do caráter extrafiscal da tributação e dos limites éticos e jurídicos da arrecadação estatal. Sua análise é útil para demonstrar como taxas, tarifas e serviços públicos podem ser instrumentalizados para fins arrecadatórios ilegítimos, sobretudo quando há compulsoriedade e ausência de alternativa — elementos centrais na crítica à Remessa Conforme.
5. Friedrich A. Hayek
O Caminho da Servidão
Hayek fornece a chave política do problema: a centralização administrativa, mesmo quando motivada por eficiência, tende a corroer liberdades concretas. A logística centralizada e os sistemas de compliance prévio ilustram exatamente o tipo de planejamento estatal que Hayek denuncia como precursor de formas suaves, porém persistentes, de servidão.
6. Carl Schmitt
Teologia Política
Schmitt é fundamental para compreender a autolegitimação do poder. Sua tese de que o soberano é quem decide sobre o estado de exceção ajuda a interpretar como o Estado moderno cria exceções práticas permanentes — não declaradas — que suspendem a eficácia real de direitos constitucionais sem jamais revogá-los formalmente.
7. Eric Voegelin
A Nova Ciência da Política
Voegelin aprofunda o diagnóstico filosófico da dissociação entre verdade e ordem política. Sua crítica à imanentização da ordem e à substituição da verdade transcendente por critérios de conveniência histórica ajuda a compreender o “estado de compromisso” descrito no artigo: um regime que se mantém funcional ao custo da verdade.
8. Frédéric Lordon
Imperium
Embora parta de matriz distinta, Lordon contribui para a análise dos mecanismos impessoais de dominação contemporânea. Sua reflexão sobre como o poder se exerce por estruturas e não apenas por decisões pessoais ilumina a noção de mentira estrutural e dissolução da responsabilidade, centrais para compreender a extorsão indireta.
9. Joseph Ratzinger (Bento XVI)
Valores em um Tempo de Desintegração
Ratzinger oferece o fundamento moral do argumento: quando a verdade deixa de ser critério da política, o direito se converte em técnica de poder. Sua reflexão é decisiva para sustentar a crítica ao Estado que governa pela conveniência e pela eficiência, dissociado de qualquer ordem moral objetiva.
10. Santo Tomás de Aquino
Suma Teológica — Tratado da Lei
Tomás de Aquino fornece o arcabouço clássico da legitimidade da lei. A distinção entre lei justa e corrupção da lei permite afirmar, com rigor filosófico, que normas ou práticas que violam o bem comum — ainda que formalmente legais — não obrigam em consciência. Essa base é essencial para a crítica ao “César que se autolegitima”.
Jurisprudência do STF sobre a imunidade tributária do livro
(art. 150, VI, “d”, da Constituição)
1. RE 330.817/SP (Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, j. 17.03.2004)
Tese firmada:
A imunidade tributária dos livros deve ser interpretada ampliativamente, em razão de sua finalidade constitucional de proteção à cultura, à educação e à difusão do conhecimento.
Comentário:
Este precedente é fundamental porque afasta qualquer leitura restritiva da imunidade. O STF reconhece que o dispositivo constitucional não é um privilégio fiscal, mas um instrumento civilizatório. Logo, qualquer mecanismo estatal que, ainda que formalmente neutro, produza efeito restritivo equivalente à tributação, viola a Constituição em sua substância.
2. RE 202.149/SP (Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, j. 25.11.1998)
Tese firmada:
A imunidade do livro protege o conteúdo intelectual, e não a forma ou o suporte material.
Comentário:
Esse precedente é decisivo para afastar distinções artificiais entre meios físicos, digitais ou logísticos. Se a Constituição protege o conteúdo, não pode o Estado inviabilizar o acesso a esse conteúdo por meio de custos acessórios compulsórios. O raciocínio do STF conduz diretamente à conclusão de que o meio não pode ser usado para anular o fim protegido.
3. ADI 595/DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, j. 18.02.1999)
Tese firmada:
A imunidade tributária do livro visa impedir qualquer forma de obstáculo estatal à circulação de ideias.
Comentário:
Aqui o STF explicita a finalidade teleológica da imunidade: impedir obstáculos, não apenas impostos nominais. O conceito de “obstáculo” é mais amplo do que o de tributo stricto sensu. Fretes monopolizados, taxas logísticas compulsórias e centralizações artificiais se enquadram perfeitamente como obstáculos indiretos, ainda que travestidos de serviços.
4. RE 595.676/RJ (Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 08.03.2017 – Tema 593 da Repercussão Geral)
Tese firmada:
A imunidade alcança livros eletrônicos (e-books) e leitores digitais dedicados, desde que funcionalmente vinculados à leitura.
Comentário:
Este julgamento consolida a compreensão de que a imunidade acompanha a função cultural, e não a materialidade. Se até o suporte tecnológico é protegido quando necessário à fruição do conteúdo, com mais razão os meios logísticos indispensáveis à circulação do livro físico não podem ser instrumentalizados para gerar ônus confiscatório.
5. RE 221.239/SP (Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, j. 07.06.2001)
Tese firmada:
A imunidade do art. 150, VI, “d” não pode ser relativizada por argumentos arrecadatórios.
Comentário:
O STF afasta expressamente a lógica da conveniência fiscal. A decisão reforça que limitações constitucionais ao poder de tributar não se submetem à necessidade arrecadatória do Estado. Esse ponto dialoga diretamente com a crítica ao “estado de compromisso” que sacrifica a verdade constitucional em nome da funcionalidade administrativa.
6. AI 705.941-AgR/SP (Rel. Min. Celso de Mello, j. 16.11.2010)
Tese firmada:
As imunidades tributárias devem ser interpretadas como garantias institucionais, e não como exceções toleradas pelo Estado.
Comentário:
Celso de Mello enfatiza que a imunidade não é concessão graciosa, mas limite estrutural ao poder estatal. Isso reforça a tese central do artigo: quando o Estado cria mecanismos indiretos para contornar a imunidade, ele não está “regulando”, mas violando um limite constitucional expresso.
Síntese jurisprudencial aplicada à tese do artigo
Da leitura sistemática desses precedentes, resulta um conjunto coerente de conclusões:
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A imunidade do livro é material, finalística e ampliativa, não meramente formal.
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O STF rejeita distinções artificiais que esvaziem o direito protegido.
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Obstáculos indiretos à circulação do livro são constitucionalmente vedados.
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Argumentos de eficiência, arrecadação ou logística não prevalecem sobre a imunidade.
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O Estado não pode fazer por vias administrativas aquilo que lhe é proibido fazer por via tributária direta.
Em termos bastiatianos: o STF protege não apenas o que se vê (a ausência do imposto), mas também o que não se deve permitir que exista — a neutralização prática do direito por meios indiretos.
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