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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O historiador e o bombeiro: da necessidade de sangue frio na guerra cultural

Em meio à turbulência da chamada Guerra Cultural e Civilizacional, muitos se veem convocados a reagir com a rapidez nervosa de quem tenta apagar incêndios com as próprias mãos. As notícias chegam com a velocidade de flechas atiradas ao acaso; as redes sociais convocam batalhões inteiros à indignação instantânea; e as narrativas políticas disputam o comando das emoções humanas como quem disputa território. Nesse cenário, o conselho de Lisboa — do Vlog do Lisboa — ecoa como advertência e como método: é preciso ter sangue frio.

Mas o sangue frio não é atributo natural das almas inquietas. É disciplina. É formação. É postura intelectual. E, sobretudo, é a recusa deliberada de ser arrastado para o frenesi emocional que interessa exatamente àqueles que lucram com o caos. Para alguns, esse sangue frio só pode brotar de uma escolha radical: deixar de reagir como bombeiro para pensar como historiador.

1. O bombeiro: a alma em chamas

O bombeiro reage ao instante. O incêndio lhe impõe o ritmo. Cada labareda exige ação imediata; cada faísca parece anunciar uma catástrofe maior. No plano psicológico, viver como bombeiro na esfera pública significa estar sempre à mercê das notícias, sempre respondendo ao calor do momento, sempre alimentado por adrenalina. Essa postura, embora pareça heroica, é frágil: o bombeiro da política se desgasta, se irrita, se desespera — e, quando tenta alertar o outro, recebe uma “patada” como resposta.

Pois quando alguém está tomado pela emoção, não quer explicação: quer catarse. E quem busca catarse não suporta contradicção, nem contexto, nem historicidade.

Tentar convencê-lo é inútil, porque seu terreno interior está em combustão.

2. O historiador: a alma que decanta

O historiador, por outro lado, não combate incêndios: examina ruínas. Ele não corre em direção às chamas: ele caminha, muitos anos depois, entre os restos do que foi queimado.

A metáfora é poderosa porque descreve um método. O historiador olha os acontecimentos como quem contempla as pirâmides do Egito — com distância, com silêncio, com objetividade. Enquanto o bombeiro vive o trauma em tempo real, o historiador o estuda — quando já não há fumaça, nem barulho, nem tumulto.

A sua conversão a esse método nasce de uma necessidade moral: evitar ser presa fácil do sensacionalismo. A mídia, os influenciadores e os agitadores políticos não querem historiadores: querem bombeiros. Não lhes interessa que alguém pense; interessa que alguém reaja. A emoção é a ferramenta da manipulação. A razão, a sua derrota.

Ao se adotar o olhar do historiador — mesmo vivendo os fatos enquanto eles acontecem —, ganha-se algo que o mundo atual tenta impedir: distância temporal interior. O fato não é negado; apenas é deixado repousar, como vinho que decanta. Só depois a análise começa. É essa decantação que permite o sangue frio.

3. O direito de não ser informado

Uma das disciplinas necessárias para alcançar essa postura é aquilo que poderíamos chamar de direito de não ser informado. Não se trata de ignorância voluntária — mas de autodefesa cognitiva.

Informar-se menos é, paradoxalmente, entender mais. Todo excesso de informação de curto prazo gera:

  • indignação

  • ansiedade

  • falsa urgência

  • impotência

  • confusão

  • perda de perspectiva

Esses efeitos não são acidentais: são desejados. A Guerra Cultural moderna é travada justamente pela saturação informacional. O indivíduo é bombardeado por microacontecimentos que não têm relevância histórica, mas que, apresentados na forma de urgência, produzem cansaço moral e dissolução do juízo.

Quando se exerce o direito de não ser informado, recupera-se a soberania do próprio espírito. Quem faz isso não se deixa arrastar pela avalanche de opiniões, interpretações, vídeos, recortes e alarmes. Só depois, com serenidade, busca o que realmente importa — e interpreta com frieza aquilo que todos consumiram com calor.

No tempo da hiperexposição, escolher não saber imediatamente é um ato de liberdade.

4. A impossibilidade de convencer

Uma das constatações mais duras — mas também mais libertadoras — é que não há como convencer ninguém à força. Na esfera pública, quase ninguém está disposto a ouvir. A maior parte das pessoas não busca verdade: busca confirmação emocional. Por isso, quando tentamos explicar, argumentar ou contextualizar, recebe agressividade em troca da parte de quem conserva o que é conveniente, ainda que isto esteja dissociado da verdade.

A “patada” não é dirigida a mim; é dirigida ao que represento naquele momento:sou um espelho que perturba, pois o conversantista não quer se olhar no espelho de modo a ver o monstro moral que se tornou..

A solução, portanto, não está em tentar “ganhar conversas”, mas em testemunhar o real com sobriedade. O trabalho do historiador não é converter, mas registrar. Não é disputar, mas esclarecer. Não é vencer, mas iluminar.

Quem quiser entender, entenderá no tempo próprio. Quem não quiser jamais entenderá — e não é missão minha arrombar portas trancadas, posto que não sou chaveiro, nem oficial de justiça.

5. O historiador como soldado da lucidez

Assumir essa postura não significa alienar-se ou tornar-se indiferente. Pelo contrário: é uma forma mais elevada de engajamento. Quando nos recusamos a agir como bombeiro, não estámos fugindo da guerra cultural; na verdade, estamos subindo a um posto de observação mais alto.

Do topo, enxerga-se melhor. E, justamente por isso, se reage menos — e age-se mais.

A lucidez é o escudo.
A distância é a espada.
A razão é disciplina interior.

O historiador não se desespera porque sabe que todo fato, por mais brutal que pareça, faz parte de um processo maior que só se revela no tempo. Ele não se apressa porque compreende que a verdade, como um rio, nunca corre em linha reta. Ele não tenta convencer porque reconhece que cada consciência tem seu ritmo próprio de maturação.

Quando escolhemos viver a vida tal como um historiador — e não como um bombeiro —, não estamos fugindo da batalha: estamos escolhendo combatê-la com inteligência, e não com os vícios da época.

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