Aplicar o conceito de ruína à política brasileira não é um recurso retórico, mas uma necessidade analítica. O Brasil é menos uma sucessão ordenada de projetos políticos do que um campo estratificado de restos: ideias não realizadas, instituições mal consolidadas, promessas interrompidas, reformas inconclusas e narrativas que se sobrepõem sem jamais se integrar plenamente.
Nesse sentido, o governo Bolsonaro não surge como uma anomalia absoluta, mas como uma ruína recente erguida sobre ruínas antigas. Para compreendê-lo historicamente, é preciso primeiro compreender o terreno.
1. Ruína como estrutura permanente da política brasileira
Diferentemente de sociedades que passaram por rupturas institucionais claras — revoluções fundadoras, guerras civis conclusivas ou pactos constitucionais amplamente assimilados — o Brasil se caracteriza por uma continuidade instável. Mudam-se os regimes, preservam-se práticas; proclamam-se novidades, mantêm-se estruturas.
A política brasileira é, assim, um espaço onde:
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instituições sobrevivem mais como forma do que como substância;
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conceitos importados operam deslocados de sua função original;
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o passado não é superado, mas soterrado provisoriamente.
Essas camadas mal resolvidas constituem ruínas vivas — não ruínas frias, prontas para o exame, mas ruínas ainda disputadas, utilizadas e reocupadas conforme a conveniência do presente.
2. O presente como incêndio permanente
O traço mais marcante da política brasileira contemporânea é a incapacidade de esfriamento do presente. O país vive em estado quase contínuo de urgência moral, crise narrativa e mobilização simbólica. Tudo acontece “pela última vez”, “em defesa da democracia” ou “contra a barbárie”, independentemente do conteúdo concreto das decisões.
Esse estado de incêndio permanente impede a transformação do passado em ruína analisável. O que deveria ser objeto de história permanece como arma retórica. O resultado é uma política incapaz de aprender com seus próprios restos, porque insiste em queimá-los novamente.
3. Bolsonaro como ruína antecipada
Nesse contexto, o governo Bolsonaro apresenta uma peculiaridade: ele começou a se tornar ruína antes mesmo de terminar. Isso ocorreu porque sua existência foi imediatamente capturada por narrativas extremadas, tanto de exaltação quanto de condenação.
Desde o início, falou-se mais sobre o que Bolsonaro representaria do que sobre o que efetivamente fazia ou deixava de fazer. O governo foi convertido em símbolo total:
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para uns, da salvação nacional;
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para outros, da ameaça absoluta.
Esse excesso simbólico acelerou sua fossilização. Em vez de ser analisado como processo político, foi transformado em alegoria. Alegorias envelhecem rápido; ruínas permanecem.
4. O problema da excepcionalização
Um erro recorrente da análise política brasileira é a excepcionalização seletiva. Trata-se de isolar determinado governo como causa única de males estruturais que o antecedem e o sucedem.
O futuro historiador, trabalhando com o governo Bolsonaro já como ruína fria, provavelmente notará:
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continuidades administrativas com governos anteriores;
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limites estruturais que não foram criados por ele;
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conflitos herdados e não inaugurados.
Isso não absolve erros nem responsabilidades, mas impede a mistificação. Ruínas ensinam precisamente porque mostram limites, não porque confirmam mitos.
5. A disputa pelo passado recente
No Brasil, o passado recente é tratado como propriedade política. Quem controla a narrativa do passado controla a legitimidade do presente. Daí a dificuldade em aceitar o governo Bolsonaro como objeto histórico e não como tabu ou fetiche.
A disputa não é apenas sobre o que aconteceu, mas sobre quem tem o direito de dizer o que aconteceu. Esse monopólio narrativo transforma a história em moralização retrospectiva e impede a emergência de uma historiografia madura.
As ruínas, contudo, são indóceis. Elas resistem à domesticação completa.
6. Ruínas e responsabilidade histórica
Tratar a política brasileira como campo de ruínas não implica ceticismo niilista. Ao contrário: implica responsabilidade intelectual. Ruínas exigem:
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reconstrução paciente;
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comparação histórica;
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humildade interpretativa.
O governo Bolsonaro, enquanto ruína futura, será um teste para a maturidade historiográfica brasileira. Se for analisado apenas como trauma ou desvio moral, nada se aprenderá. Se for examinado como parte de uma cadeia de continuidades, rupturas parciais e resistências institucionais, ele poderá iluminar problemas mais profundos da vida política nacional.
7. O que as ruínas ensinam
Ruínas não oferecem respostas prontas. Elas oferecem advertências. Mostram:
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o custo da hipertrofia simbólica da política;
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os riscos de uma sociedade que transforma o presente em tribunal absoluto;
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a fragilidade de instituições que sobrevivem mais pela retórica do que pela prática.
Enquanto o Brasil insistir em queimar o passado para vencer disputas imediatas, continuará produzindo ruínas sem aprendizado. O trabalho do historiador — e do intelectual sério — é resistir a esse incêndio, aguardando o tempo necessário para que os restos falem.
Somente então a política brasileira poderá ser compreendida não como sucessão de monstros e salvadores, mas como processo histórico marcado por ruínas recorrentes, das quais o governo Bolsonaro é apenas uma — importante, recente, ruidosa, mas não única.
Bibliografia comentada
Walter Benjamin
Passagens; Sobre o conceito de história
Benjamin é o autor decisivo para pensar a ruína como categoria cognitiva. Sua noção de fragmento histórico — aquilo que sobrevive fora da narrativa do progresso — permite compreender a política brasileira como um acúmulo de restos não integrados. No caso do governo Bolsonaro, Benjamin ajuda a entender por que certos fatos descartados no presente podem adquirir centralidade futura, quando o incêndio das paixões tiver cessado.
Reinhart Koselleck
Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos
Koselleck oferece o instrumental conceitual para compreender a defasagem entre experiência histórica e expectativa política. Sua distinção entre tempo curto (do acontecimento) e tempo longo (da estrutura) é essencial para evitar a excepcionalização do governo Bolsonaro e situá-lo como ruína recente dentro de um campo histórico mais amplo.
Fernand Braudel
Escritos sobre a história
Braudel fornece a chave metodológica para deslocar o foco do evento para a longa duração. Aplicado à política brasileira, seu pensamento permite ver governos sucessivos como variações superficiais sobre estruturas persistentes. Bolsonaro, nessa leitura, aparece menos como ruptura absoluta e mais como manifestação aguda de tendências anteriores.
Hannah Arendt
Entre o passado e o futuro; Crises da República
Arendt é fundamental para compreender sociedades que perderam critérios estáveis de julgamento histórico. Sua reflexão sobre crise, autoridade e tradição ilumina o estado de incêndio permanente do presente brasileiro, no qual o passado recente não consegue se tornar ruína analisável, permanecendo como instrumento de luta política.
Eric Voegelin
Ordem e história; A nova ciência da política
Voegelin contribui para a análise da política como expressão de desordem simbólica. Sua crítica à ideologização da realidade ajuda a compreender por que governos são transformados em alegorias morais — salvadores ou demônios — e por que essa operação acelera a fossilização simbólica do governo Bolsonaro como ruína prematura.
José Murilo de Carvalho
Cidadania no Brasil: o longo caminho
Autor central para situar a política brasileira como processo incompleto de formação cívica. Sua obra permite compreender o acúmulo de ruínas políticas como resultado de uma cidadania frágil, intermitente e frequentemente instrumentalizada, contexto no qual governos disruptivos emergem e são rapidamente mitificados ou demonizados.
Raymundo Faoro
Os donos do poder
Faoro é indispensável para compreender as continuidades profundas da política brasileira. Sua análise do patrimonialismo ajuda a explicar por que diferentes governos, apesar de discursos antagônicos, acabam operando sobre estruturas semelhantes. Bolsonaro, nessa perspectiva, torna-se uma ruína recente sobre um edifício muito mais antigo.
Sérgio Buarque de Holanda
Raízes do Brasil
Embora frequentemente simplificado, Sérgio Buarque é útil para pensar a persistência de formas personalistas e afetivas de organização política. Sua leitura contribui para entender a dificuldade brasileira de institucionalizar o conflito político sem transformá-lo em drama moral absoluto.
Zdzisław Krasnodębski
Democracy, Nationalism and Modernity
Autor polonês relevante para análises comparadas fora do eixo anglo-americano. Sua reflexão sobre modernidade tardia, identidade nacional e crise da democracia liberal oferece paralelos úteis para compreender o Brasil como sociedade periférica que absorve modelos políticos de modo fragmentado, produzindo ruínas conceituais e institucionais.
Leszek Kołakowski
Modernity on Endless Trial
Kołakowski ajuda a compreender a crise permanente da modernidade como condição normal, e não exceção. Sua abordagem é valiosa para evitar leituras apocalípticas do presente brasileiro e para compreender o governo Bolsonaro como episódio em uma sequência contínua de experimentações fracassadas ou inconclusas.
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