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sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Da nacionidade enquanto dupla residência, unidade interior e presença não-totalitária - sobre o pensar em duas línguas sob um mesmo princípio cristológico

Quando se toma dois países como um mesmo lar em Cristo, por Cristo e para Cristo, algo singular ocorre no interior da inteligência. O pensamento deixa de se organizar exclusivamente a partir de uma língua, de uma tradição nacional ou de um horizonte cultural isolado, e passa a operar em regime de co-presença. O raciocínio em português e o raciocínio em polonês não se alternam como máscaras sucessivas, mas coexistem como instrumentos distintos ordenados a um mesmo fim.

À primeira vista, esse fenômeno poderia ser confundido com uma forma de dupliplensar. Contudo, tal associação exige uma distinção rigorosa. O doublethink descrito por George Orwell em 1984 é uma técnica de dominação: trata-se da capacidade forçada de sustentar contradições reais, impostas por um poder totalitário, com o objetivo de dissolver a verdade, enfraquecer a consciência moral e tornar o indivíduo governável. Ali, a duplicidade é patológica, coercitiva e destrutiva.

O que se observa aqui é o inverso. Não há contradição, mas articulação. Não há coerção, mas adesão voluntária à verdade. Não há fragmentação da pessoa, mas ampliação da presença pessoal. O pensamento não se divide; ele se expande.

Pensar em duas línguas, quando ambas são habitadas como expressão de um mesmo compromisso com a verdade, produz uma forma de inteligência que poderíamos chamar de pensamento de dupla residência. Cada língua carrega sua própria economia conceitual, seu modo particular de ordenar o mundo, suas ressonâncias históricas e espirituais. O português traz consigo um certo ritmo, uma determinada sensibilidade metafísica e jurídica; o polonês, por sua vez, expressa uma experiência histórica marcada pela fidelidade, pela resistência e pela densidade moral. Quando ambas operam sob um mesmo eixo cristológico, elas não competem: se iluminam mutuamente.

Essa co-presença não resulta numa totalização ideológica. Pelo contrário, trata-se de uma presença total, mas não totalitária. Total porque envolve a pessoa inteira — inteligência, memória, afeto, responsabilidade moral. Não totalitária porque a unidade não é imposta de fora, nem construída à custa da supressão das diferenças. O princípio unificador não é o Estado, nem a ideologia, nem a técnica, mas a verdade — e, em última instância, Cristo, que unifica sem absorver e ordena sem anular.

Nesse sentido, o fenômeno é profundamente católico, no sentido próprio do termo: universal sem ser uniforme. A universalidade não nasce da homogeneização, mas da capacidade de manter múltiplas mediações culturais sob um mesmo fundamento ontológico e moral. A fidelidade ao centro permite a diversidade nas margens; sem esse centro, a diversidade degenera em relativismo, e a unidade em tirania.

Há aqui também uma dimensão ética decisiva. Viver intelectualmente em dois países como um mesmo lar exige lealdade — lealdade à verdade, à tradição recebida, ao dever de julgar cada coisa segundo o que ela é. Como ensinou Josiah Royce, a lealdade autêntica não é fechamento tribal, mas dedicação consciente a uma causa digna de ordenar a vida inteira. Quando essa causa é Cristo, a lealdade não empobrece o pensamento; ela o robustece.

Assim, o pensar em português e em polonês, longe de gerar confusão ou duplicidade moral, pode produzir uma inteligência mais vigilante, mais precisa e mais responsável. Trata-se de um pensamento que habita mais de um solo sem perder o chão, porque o seu fundamento não é geográfico, mas espiritual.

Em tempos marcados pela pressão totalizante das ideologias e pela fragmentação interior promovida pela técnica, essa forma de dupla residência intelectual aparece não como ameaça, mas como antídoto: uma presença plena que não oprime, uma unidade que não violenta, uma universalidade fundada não no poder, mas na verdade que liberta.

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