Entre as inúmeras delicadezas da linguagem humana, poucas são tão expressivas quanto os nomes populares que as culturas dão aos seres minúsculos que habitam o nosso cotidiano. A joaninha — esse ponto vermelho e pontilhado que a infância aprende a olhar com simpatia — talvez seja o inseto que mais coleciona apelidos carinhosos ao redor do mundo. Mas nenhum deles é tão poético quanto o termo que os ucranianos (e outros povos eslavos) lhe reservam: “a vaca de Deus” (божа корівка — bozha korivka).
1. A força simbólica do nome
À primeira vista, um nome assim pode parecer estranho ao ouvido ocidental. Por que “vaca”? Por que “de Deus”? A resposta está na teologia popular, na mentalidade agrária e na forma como os povos eslavos relacionam o sagrado ao cotidiano.
A vaca, para as sociedades camponesas da Europa Oriental, sempre foi o animal doméstico por excelência. Nutridora, paciente, dócil — símbolo de providência. Associar a joaninha a uma “vaca” é elevá-la ao status de criatura benéfica, que alimenta silenciosamente a terra: afinal, joaninhas devoram pulgões e protegem as plantações, sendo verdadeiras auxiliares dos agricultores. É um inseto pequeno, mas com uma função grandiosa.
O acréscimo “de Deus” encerra um sentido ainda mais profundo: o de que certas criaturas são guardadas por uma atenção especial do Alto. É como se dissesse: “não a machuque, pois ela é Dele, não sua”. Em inúmeras aldeias da Ucrânia, da Polônia ou da Rússia, matar uma joaninha era visto como sinal de mau agouro. O povo a libertava na palma da mão e soprava, dizendo: “voa, vaca de Deus, leva o bom tempo”.
2. A joaninha como mensageira
O simbolismo da joaninha como mensageira divina está presente em toda a Europa. No português, o diminutivo “joaninha” remete a Santa Joana ou até à Virgem Maria em tradições antigas; no inglês medieval, “ladybird” queria dizer literalmente “pássaro (ou criatura) de Nossa Senhora”.
Assim, de modo impressionante, culturas distintas convergiram para um mesmo significado: é um ser pequeno, mas protegido por Deus ou por Nossa Senhora.
3. O olhar eslavo para o sagrado
O nome bozha korivka revela algo essencial sobre a espiritualidade eslava: a sacralização da vida simples. Para esse imaginário, o sobrenatural não está apenas no altar, mas também na horta, na chuva, no vento que passa entre os trigais e até no besouro vermelho que pousa na mão de uma criança.
A joaninha, com sua docilidade e utilidade invisível, torna-se um microcosmo da Providência: Deus cuida até das mínimas coisas, e nas mínimas coisas deixa pistas do Seu cuidado.
4. O contraste com o Ocidente moderno
Enquanto o Ocidente racionalista tende a chamar a joaninha apenas de “inseto benfazejo” ou “coccinélido”, o Leste europeu conserva essa linguagem afetiva que junta teologia, zoologia e poesia. Trata-se de uma herança simbólica que resiste, mesmo sob guerras, deslocamentos e crises culturais.
E talvez seja justamente esse simbolismo que torna o nome tão cativante para quem o descobre pela primeira vez: ele ilumina um modo de ver o mundo onde o sagrado não está distante, mas encarnado em pequenos sinais.
5. A joaninha como imagem espiritual
Por fim, chamar a joaninha de “vaca de Deus” é uma forma de reconhecer que a beleza da vida não está apenas no que é grandioso, mas também no que é diminuto e quase invisível. A joaninha é um lembrete discreto da ordem criada, da harmonia entre o trabalho humano e a natureza, e da presença amorosa que permeia tudo.
O nome é estranho apenas para quem perdeu a capacidade de ver o mundo como um grande sacramento. Para o espírito que ainda se deixa comover, ele é natural — e profundamente verdadeiro.
Bibliografia Comentada
1. Ivanits, Linda J. — Russian Folk Belief. (M.E. Sharpe, 1989)
Um dos estudos mais sólidos sobre crenças populares russas e, por extensão, eslavas orientais. Ivanits discute como certos animais pequenos são vinculados a figuras sagradas, incluindo insetos como a joaninha. A autora explica a lógica agrária que permeia os nomes populares, e como criaturas úteis são consideradas “protegidas por Deus”. Excelente para compreender o pano de fundo do termo bozha korivka.
2. Baran, Ann F. — Ukrainian Folk Beliefs. (University of Calgary Press, 1992)
Focado especificamente na cultura ucraniana, este livro apresenta rezas, cantigas e superstições envolvendo animais. Há menções diretas às joaninhas, ao costume de assoprá-las da mão enquanto se pede bom tempo, e às proibições tradicionais de matá-las. Uma fonte indispensável para localizar historicamente o simbolismo ucraniano.
3. Gimbutas, Marija — The Slavs. (Thames & Hudson, 1971)
Gimbutas aborda a estrutura religiosa primordial dos povos eslavos e a maneira como o campesinato ligava o divino à vida cotidiana. Embora não trate especificamente da joaninha, o livro oferece um quadro antropológico para entender por que pequenos animais associados à colheita (como a joaninha, devoradora de pragas) eram vistos como “servidores de Deus”.
4. Frazer, James George — The Golden Bough. (Várias edições)
Um clássico da antropologia comparada. Frazer examina símbolos, amuletos naturais e a relação entre pequenos animais e a boa sorte. Ele comenta tradições europeias que associam joaninhas à chuva, ao sol e à proteção divina — ideias que também aparecem nas culturas eslavas. Serve para estabelecer paralelos com o Ocidente.
5. Ralston, W.R.S. — Songs of the Russian People. (1872; reedições modernas)
Coleção monumental de cantigas e fórmulas folclóricas, muitas delas incluindo animais pequenos como mensageiros divinos. Há cânticos que se dirigem à joaninha como “mãe do sol”, “pequena serva de Deus” ou “bichinho santo”, reforçando a associação com o sagrado.
6. Dixon-Kennedy, Mike — Encyclopedia of Russian & Slavic Myth and Legend. (ABC-CLIO, 1998)
Uma referência prática, com verbetes claros. O autor explica a função dos insetos benéficos dentro da cosmologia eslava, mencionando como a joaninha simboliza proteção e boa fortuna. O verbete sobre “Ladybird” em diferentes línguas ajuda a comparar a forma inglesa “Our Lady’s bird” (pássaro de Nossa Senhora) com a forma ucraniana “vaca de Deus”.
7. Eliade, Mircea — Patterns in Comparative Religion. (1958)
Eliade analisa como o sagrado se manifesta nos elementos naturais. Sua teoria de hierofania ajuda a compreender por que culturas agrárias enxergam símbolos religiosos em animais pequenos. Embora o livro não fale da joaninha diretamente, fornece instrumentos conceituais para interpretar o fenômeno.
8. Chambers, Robert — The Book of Days. (1864; reedições)
Relatos populares britânicos que incluem diversas crenças relacionadas à joaninha (“ladybird”), sobretudo sua conexão com Nossa Senhora e com a proteção divina. Útil para comparar a tradição eslava com a tradição ocidental cristã.
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