Resumo
Este artigo investiga o ponto crítico em que políticas públicas de incentivo à cultura deixam de cumprir sua finalidade educadora — como prevista por Friedrich List — e convertem-se em mecanismos de sustentação de uma classe artística ociosa, ideologicamente engajada e esteticamente empobrecida. Articula-se a teoria listiana com as análises de Thorstein Veblen sobre o comportamento das elites improdutivas, a fim de demonstrar como um setor cultural capturado por agendas de prestígio, militância e ociosidade se torna obstáculo ao desenvolvimento civilizacional. Sustenta-se que, quando a arte deixa de exercer sua função de inteligência simbólica e de transmissão moral, o protecionismo cultural perde sua legitimidade.
1. Introdução
O desenvolvimento cultural de um país depende de instituições sólidas, artistas comprometidos com excelência e mecanismos de incentivo que atuem como instrumentos formativos, não como substitutos da responsabilidade criadora. Entretanto, a realidade brasileira contemporânea evidencia a debilidade desse modelo. Subsídios públicos, ao invés de elevar o padrão técnico e simbólico da arte, frequentemente sustentam estruturas estagnadas, onde impera o ativismo ideológico em detrimento da criação estética.
Esse cenário revela um limite intrínseco ao protecionismo cultural: o momento em que ele deixa de educar e passa a premiar comportamentos que contrariam sua finalidade civilizacional.
2. A função civilizadora da arte
Historicamente, a arte é um dos principais vetores de formação moral, intelectual e espiritual de uma sociedade. Através da estética, a comunidade:
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forma padrões de sensibilidade;
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transmite valores e arquétipos;
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organiza a memória histórica;
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reforça identidades coletivas;
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amplia a imaginação moral.
Quando a classe artística cumpre esse papel, a arte funciona como ativo estratégico civilizacional. Quando falha, sua ausência ou distorção repercute negativamente no capital cultural da sociedade.
3. O deslocamento ideológico da classe artística
Em diversas áreas da produção cultural brasileira, observa-se crescente substituição de técnica, beleza e rigor por militância, panfletarismo e retórica de facção. Entre os sintomas desse deslocamento, destacam-se:
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abandono do domínio técnico;
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hostilidade à crítica e à pluralidade estética;
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dependência estrutural de subsídios;
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confusão entre obra de arte e peça de propaganda;
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uso de mecanismos de financiamento como extensão de preferências ideológicas.
Esse comportamento produz obras de baixo valor estético, reduz a credibilidade do setor e compromete a própria legitimidade dos mecanismos de incentivo.
4. O protecionismo educador em Friedrich List
Friedrich List concebia o protecionismo como instrumento temporário de formação — um meio para elevar setores estratégicos até que pudessem competir globalmente. Sua teoria se apoia em cinco pilares:
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desenvolvimento de capacidades produtivas;
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autonomia técnica;
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elevação do padrão médio de qualidade;
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benefício social duradouro;
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formação de excelência.
Transferido para o campo cultural, isso significa que incentivos devem:
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formar artistas virtuosos;
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consolidar instituições culturais sólidas;
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criar um público educado;
-
fomentar obras de densidade simbólica.
Quando isso não ocorre, o incentivo deixa de educar e passa a perpetuar estruturas estagnadas.
5. A teoria da classe ociosa de Veblen e a formação da elite cultural improdutiva
Thorstein Veblen, em A Teoria da Classe Ociosa, demonstra como elites improdutivas tendem a organizar sua existência em torno de símbolos de prestígio, práticas cerimoniais e consumo conspícuo, desvinculados do trabalho produtivo. No contexto cultural brasileiro, a análise vebleniana ilumina fenômenos como:
-
artistas cujo status depende mais de posicionamento ideológico do que de mérito técnico;
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obras concebidas como sinalizadores de pertencimento a grupos, não como bens culturais;
-
uso do incentivo estatal como forma de manutenção simbólica, não de criação;
-
formação de uma aristocracia cultural improdutiva, que reforça sua legitimidade por meio de discursos de superioridade moral.
Assim, o sistema de incentivos passa a financiar uma classe cuja produtividade cultural real é mínima, mas cujo capital simbólico — inflado artificialmente — exige reconhecimento contínuo.
Essa simbiose entre protecionismo disfuncional e classe ociosa gera uma cultura estagnada e refratária à crítica.
6. O ponto de inversão: quando o incentivo se torna obstáculo
A teoria listiana e a crítica vebleniana convergem para apontar um mesmo problema: subsídios que não formam capacidade degeneram em mecanismos de perpetuação de mediocridade.
O ponto de inversão ocorre quando:
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a dependência de subsídios se torna permanente;
-
o mérito é substituído por alinhamento político;
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a técnica cede espaço à retórica militante;
-
a cultura passa a operar como indústria de prestígio, e não de criação;
-
incentivos financiam estruturas que não servem ao público, mas aos próprios incentivados.
Nesse cenário, o protecionismo se converte em óbice ao florescimento artístico, impedindo o surgimento de artistas independentes, públicos exigentes e instituições robustas.
7. Efeitos civilizacionais da degradação artística
A degeneração do setor cultural produz impactos sistêmicos:
7.1. Perda de padrões estéticos
Sem critérios claros, o gosto público se deteriora.
7.2. Atrofia moral
A ausência de símbolos elevados dificulta a formação do caráter e do senso de proporção moral.
7.3. Empobrecimento intelectual
A redução da complexidade estética limita o desenvolvimento das capacidades interpretativas.
7.4. Vulnerabilidade ideológica
A sociedade torna-se presa fácil de discursos totalizantes quando perde referências simbólicas mais altas.
7.5. Perda de autonomia civilizacional
Sem arte vigorosa, uma nação perde sua capacidade de se interpretar e projetar seu futuro.
8. Conclusão
O protecionismo cultural, para ser legítimo, deve operar como mecanismo de formação de excelência — não como subsídio à ociosidade ou à militância ideológica.
Quando incentivos financiam uma classe artística improdutiva, o sistema deixa de cumprir sua função educadora e passa a bloquear o florescimento cultural.
A combinação das análises de Friedrich List e Thorstein Veblen revela que o limite do protecionismo é ultrapassado quando o setor protegido não produz capacidade, mas apenas autojustificação.
Para restaurar a função civilizadora da arte, é necessário:
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reinstituir o mérito;
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exigir técnica e densidade simbólica;
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eliminar incentivos capturados por grupos ideológicos;
-
formar público capaz de demandar qualidade;
-
reconstruir instituições culturais independentes.
Sem isso, qualquer política cultural continuará a alimentar uma classe ociosa e a impedir o resgate da verdadeira arte enquanto ativo civilizacional.
Bibliografia Comentada
List, Friedrich. The National System of Political Economy.
Base para o conceito de protecionismo educador, essencial para compreender o limite do incentivo cultural.
Veblen, Thorstein. The Theory of the Leisure Class (A Teoria da Classe Ociosa).
Análise seminal sobre elites improdutivas, fundamental para entender a formação de uma classe artística que usa prestígio e sinalização ideológica como substitutos de produtividade estética.
Scruton, Roger. Culture Counts: Faith and Feeling in a World Besieged.
Obra sobre a necessidade da alta cultura como fundamento moral e civilizacional.
Scruton, Roger. Beauty.
Exploração da beleza como categoria objetiva e indispensável à saúde moral e intelectual de uma sociedade.
Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França.
Base filosófica para a compreensão da importância da tradição e da continuidade cultural.
Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas.
Examina a degeneração das elites e a abdicação de sua missão formadora.
Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo.
Interpreta a fragmentação cultural contemporânea e seu impacto na formação moral.
Mário Vieira de Mello. Ideias Políticas de Rui Barbosa.
Fundamento para compreender o papel civilizacional das instituições e da responsabilidade moral das classes formadoras.
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