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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

O limite civilizacional do protecionismo cultural: quando a arte deixa de ser ativo e passa a ser óbice

Resumo

Este artigo investiga o ponto crítico em que políticas públicas de incentivo à cultura deixam de cumprir sua finalidade educadora — como prevista por Friedrich List — e convertem-se em mecanismos de sustentação de uma classe artística ociosa, ideologicamente engajada e esteticamente empobrecida. Articula-se a teoria listiana com as análises de Thorstein Veblen sobre o comportamento das elites improdutivas, a fim de demonstrar como um setor cultural capturado por agendas de prestígio, militância e ociosidade se torna obstáculo ao desenvolvimento civilizacional. Sustenta-se que, quando a arte deixa de exercer sua função de inteligência simbólica e de transmissão moral, o protecionismo cultural perde sua legitimidade.

1. Introdução

O desenvolvimento cultural de um país depende de instituições sólidas, artistas comprometidos com excelência e mecanismos de incentivo que atuem como instrumentos formativos, não como substitutos da responsabilidade criadora. Entretanto, a realidade brasileira contemporânea evidencia a debilidade desse modelo. Subsídios públicos, ao invés de elevar o padrão técnico e simbólico da arte, frequentemente sustentam estruturas estagnadas, onde impera o ativismo ideológico em detrimento da criação estética.

Esse cenário revela um limite intrínseco ao protecionismo cultural: o momento em que ele deixa de educar e passa a premiar comportamentos que contrariam sua finalidade civilizacional.

2. A função civilizadora da arte

Historicamente, a arte é um dos principais vetores de formação moral, intelectual e espiritual de uma sociedade. Através da estética, a comunidade:

  • forma padrões de sensibilidade;

  • transmite valores e arquétipos;

  • organiza a memória histórica;

  • reforça identidades coletivas;

  • amplia a imaginação moral.

Quando a classe artística cumpre esse papel, a arte funciona como ativo estratégico civilizacional. Quando falha, sua ausência ou distorção repercute negativamente no capital cultural da sociedade.

3. O deslocamento ideológico da classe artística

Em diversas áreas da produção cultural brasileira, observa-se crescente substituição de técnica, beleza e rigor por militância, panfletarismo e retórica de facção. Entre os sintomas desse deslocamento, destacam-se:

  • abandono do domínio técnico;

  • hostilidade à crítica e à pluralidade estética;

  • dependência estrutural de subsídios;

  • confusão entre obra de arte e peça de propaganda;

  • uso de mecanismos de financiamento como extensão de preferências ideológicas.

Esse comportamento produz obras de baixo valor estético, reduz a credibilidade do setor e compromete a própria legitimidade dos mecanismos de incentivo.

4. O protecionismo educador em Friedrich List

Friedrich List concebia o protecionismo como instrumento temporário de formação — um meio para elevar setores estratégicos até que pudessem competir globalmente. Sua teoria se apoia em cinco pilares:

  1. desenvolvimento de capacidades produtivas;

  2. autonomia técnica;

  3. elevação do padrão médio de qualidade;

  4. benefício social duradouro;

  5. formação de excelência.

Transferido para o campo cultural, isso significa que incentivos devem:

  • formar artistas virtuosos;

  • consolidar instituições culturais sólidas;

  • criar um público educado;

  • fomentar obras de densidade simbólica.

Quando isso não ocorre, o incentivo deixa de educar e passa a perpetuar estruturas estagnadas.

5. A teoria da classe ociosa de Veblen e a formação da elite cultural improdutiva

Thorstein Veblen, em A Teoria da Classe Ociosa, demonstra como elites improdutivas tendem a organizar sua existência em torno de símbolos de prestígio, práticas cerimoniais e consumo conspícuo, desvinculados do trabalho produtivo. No contexto cultural brasileiro, a análise vebleniana ilumina fenômenos como:

  • artistas cujo status depende mais de posicionamento ideológico do que de mérito técnico;

  • obras concebidas como sinalizadores de pertencimento a grupos, não como bens culturais;

  • uso do incentivo estatal como forma de manutenção simbólica, não de criação;

  • formação de uma aristocracia cultural improdutiva, que reforça sua legitimidade por meio de discursos de superioridade moral.

Assim, o sistema de incentivos passa a financiar uma classe cuja produtividade cultural real é mínima, mas cujo capital simbólico — inflado artificialmente — exige reconhecimento contínuo.

Essa simbiose entre protecionismo disfuncional e classe ociosa gera uma cultura estagnada e refratária à crítica.

6. O ponto de inversão: quando o incentivo se torna obstáculo

A teoria listiana e a crítica vebleniana convergem para apontar um mesmo problema: subsídios que não formam capacidade degeneram em mecanismos de perpetuação de mediocridade.

O ponto de inversão ocorre quando:

  • a dependência de subsídios se torna permanente;

  • o mérito é substituído por alinhamento político;

  • a técnica cede espaço à retórica militante;

  • a cultura passa a operar como indústria de prestígio, e não de criação;

  • incentivos financiam estruturas que não servem ao público, mas aos próprios incentivados.

Nesse cenário, o protecionismo se converte em óbice ao florescimento artístico, impedindo o surgimento de artistas independentes, públicos exigentes e instituições robustas.

7. Efeitos civilizacionais da degradação artística

A degeneração do setor cultural produz impactos sistêmicos:

7.1. Perda de padrões estéticos

Sem critérios claros, o gosto público se deteriora.

7.2. Atrofia moral

A ausência de símbolos elevados dificulta a formação do caráter e do senso de proporção moral.

7.3. Empobrecimento intelectual

A redução da complexidade estética limita o desenvolvimento das capacidades interpretativas.

7.4. Vulnerabilidade ideológica

A sociedade torna-se presa fácil de discursos totalizantes quando perde referências simbólicas mais altas.

7.5. Perda de autonomia civilizacional

Sem arte vigorosa, uma nação perde sua capacidade de se interpretar e projetar seu futuro.

8. Conclusão

O protecionismo cultural, para ser legítimo, deve operar como mecanismo de formação de excelência — não como subsídio à ociosidade ou à militância ideológica.
Quando incentivos financiam uma classe artística improdutiva, o sistema deixa de cumprir sua função educadora e passa a bloquear o florescimento cultural.

A combinação das análises de Friedrich List e Thorstein Veblen revela que o limite do protecionismo é ultrapassado quando o setor protegido não produz capacidade, mas apenas autojustificação.

Para restaurar a função civilizadora da arte, é necessário:

  • reinstituir o mérito;

  • exigir técnica e densidade simbólica;

  • eliminar incentivos capturados por grupos ideológicos;

  • formar público capaz de demandar qualidade;

  • reconstruir instituições culturais independentes.

Sem isso, qualquer política cultural continuará a alimentar uma classe ociosa e a impedir o resgate da verdadeira arte enquanto ativo civilizacional.

Bibliografia Comentada

List, Friedrich. The National System of Political Economy.
Base para o conceito de protecionismo educador, essencial para compreender o limite do incentivo cultural.

Veblen, Thorstein. The Theory of the Leisure Class (A Teoria da Classe Ociosa).
Análise seminal sobre elites improdutivas, fundamental para entender a formação de uma classe artística que usa prestígio e sinalização ideológica como substitutos de produtividade estética.

Scruton, Roger. Culture Counts: Faith and Feeling in a World Besieged.
Obra sobre a necessidade da alta cultura como fundamento moral e civilizacional.

Scruton, Roger. Beauty.
Exploração da beleza como categoria objetiva e indispensável à saúde moral e intelectual de uma sociedade.

Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França.
Base filosófica para a compreensão da importância da tradição e da continuidade cultural.

Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas.
Examina a degeneração das elites e a abdicação de sua missão formadora.

Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo.
Interpreta a fragmentação cultural contemporânea e seu impacto na formação moral.

Mário Vieira de Mello. Ideias Políticas de Rui Barbosa.
Fundamento para compreender o papel civilizacional das instituições e da responsabilidade moral das classes formadoras.

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