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domingo, 14 de dezembro de 2025

Do romantismo geográfico como prisão geográfica e da geografia sentimental como ponto de partida se servir a Cristo em terras distantes

Introdução

O Romantismo, enquanto movimento literário e cultural, exerceu influência decisiva sobre a forma como o homem moderno passou a perceber a paisagem, a nação e a própria identidade. Ao privilegiar a idealização estética e emocional da realidade, o Romantismo produziu imagens poderosas, mobilizadoras e duradouras. Contudo, essa força imaginativa teve um custo intelectual e espiritual: a substituição da realidade ontológica por caricaturas simbólicas, capazes de fundar comunidades imaginadas, mas incapazes de sustentar uma compreensão verdadeira da história e da vocação humana.

Este artigo sustenta que, quando o Romantismo se associa à geografia e ao nacionalismo modernos, ele tende a gerar formas de determinismo geográfico que aprisionam o homem à terra. Em contraste, argumenta-se que a tradição portuguesa — tal como articulada por Plínio Salgado em sua Geografia Sentimental — oferece uma alternativa mais realista, por estar fundada num horizonte providencialista e cristológico, no qual a origem é ponto de partida para a missão, e não prisão identitária.

1. Idealização romântica e caricatura da realidade

A idealização é o mecanismo central do Romantismo. Diferentemente da descrição fiel da realidade, a idealização seleciona, intensifica e estiliza certos aspectos da experiência, transformando-os em arquétipos emocionais. Nesse processo, o real deixa de ser contemplado como aquilo que é, passando a ser reconstruído como imagem simbólica carregada de afetos.

Toda idealização, nesse sentido, é uma forma de caricatura: não porque seja necessariamente falsa em cada detalhe, mas porque rompe a proporção entre a coisa e sua representação. O resultado não é conhecimento, mas imaginação mobilizadora. É precisamente esse mecanismo que permite ao Romantismo produzir narrativas identitárias fortes, ainda que ontologicamente frágeis.

Quando aplicada à paisagem e à história, essa idealização gera imagens da terra, do povo e da nação que passam a funcionar como absolutos simbólicos, independentes de qualquer critério transcendente de verdade.

2. Comunidades imaginadas e nacionalismo geográfico

A combinação entre idealização romântica e nacionalismo moderno resulta na formação do que se convencionou chamar de comunidades imaginadas. A nação deixa de ser entendida como uma realidade histórica complexa e passa a ser vivida como entidade emocionalmente sacralizada.

Nesse contexto, a geografia assume papel determinante. A terra não é mais lugar de passagem, trabalho ou missão, mas fundamento último da identidade. O pertencimento territorial converte-se em destino, e a origem em limite.

Surge, assim, o determinismo geográfico: a crença de que o homem é essencialmente produto do solo que habita, e que sua realização só pode ocorrer dentro das fronteiras simbólicas da paisagem idealizada. A geografia, que deveria servir ao homem, passa a aprisioná-lo.

3. A imanentização da transcendência

O erro estrutural do Romantismo moderno não está no reconhecimento do mistério, do sublime ou do excesso da realidade sensível, mas na imanentização desses elementos. A transcendência deixa de ser entendida como ordem objetiva e passa a ser reduzida à experiência subjetiva.

O sublime romântico não aponta para Deus, mas para o sentimento do indivíduo diante da natureza. A paisagem substitui a Providência. A nação ocupa o lugar do sagrado. Forma-se, assim, uma teologia política implícita, na qual a geografia assume funções que pertencem propriamente à ordem divina.

Esse deslocamento explica por que tantas formas de nacionalismo romântico resultaram em fechamento identitário, idolatria da terra e hostilidade à mobilidade humana.

4. Plínio Salgado e o providencialismo geográfico

A Geografia Sentimental, de Plínio Salgado, parte de um princípio radicalmente distinto. Embora utilize a linguagem do sentimento e reconheça a importância da paisagem na formação humana, Plínio não absolutiza a terra nem a nação. Seu ponto de partida não é estético, mas providencial.

Na tradição que ele herda — profundamente enraizada na experiência histórica portuguesa — a origem não é fim, mas chamado. A terra natal não encerra o destino do homem; ela o envia. O território é compreendido como dom, e não como ídolo.

Dessa forma, Plínio rompe com o determinismo geográfico típico do Romantismo moderno. A geografia não define o homem; ela o situa numa história orientada por Deus.

5. O fundamento ouriqueano: origem como missão

O chamado “propósito ouriqueano” sintetiza esse horizonte espiritual. Fundado simbolicamente na Batalha de Ourique, ele afirma que a identidade portuguesa — e, por extensão, a brasileira — não se realiza no enraizamento absoluto, mas na expansão missionária.

Servir a Cristo em terras distantes não implica traição da origem, mas fidelidade a ela. Quanto mais o homem se doa na missão, mais profundamente ele se integra àquilo que ama. O amador torna-se coisa amada não por fixação sentimental, mas por participação numa ordem superior.

Nesse sentido, é perfeitamente coerente — e espiritualmente realista — que um homem tome dois países como um mesmo lar, desde que ambos estejam ordenados em Cristo, por Cristo e para Cristo. A unidade não é geográfica, mas cristológica.

6. Realismo cristão versus romantização moderna

A diferença decisiva entre o Romantismo moderno e a tradição providencialista portuguesa pode ser formulada nos seguintes termos:

  • O Romantismo cria comunidades imaginadas porque rompe com o Logos e absolutiza a imaginação.

  • A tradição cristã cria comunidades reais porque subordina a imaginação à verdade revelada.

Onde o Romantismo estetiza a paisagem e sacraliza a nação, o realismo cristão relativiza o território e absolutiza a missão. Onde o Romantismo aprisiona o homem à terra, o cristianismo o liberta para o serviço.

Conclusão

O problema do Romantismo não é o sentimento, nem a imaginação, mas sua emancipação da ordem da verdade. Ao idealizar a realidade sem referência à Providência, ele produz caricaturas poderosas, porém incapazes de sustentar uma compreensão verdadeira da história e da vocação humana.

Plínio Salgado, ao inscrever a geografia no horizonte cristológico e providencial, oferece uma alternativa mais realista. Sua Geografia Sentimental não aprisiona o homem à terra, mas o envia ao mundo. Não transforma a origem em cárcere, mas em ponto de partida para a missão.

Nesse sentido, longe de ser uma recaída romântica, o providencialismo geográfico de Plínio revela-se uma forma de realismo cristão: uma geografia que reconhece a paisagem, ama a terra, mas subordina ambas à presença real de Cristo na história.

Bibliografia comentada

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.

Obra fundamental para compreender como as nações modernas são construídas a partir de narrativas simbólicas compartilhadas, e não apenas de vínculos objetivos. Anderson fornece o arcabouço conceitual que permite entender como a idealização romântica da paisagem e da história pode gerar pertencimentos fortes, porém imaginados, especialmente quando desvinculados de uma ordem transcendente.

SALGADO, Plínio. Geografia Sentimental.

Texto central para a compreensão do providencialismo geográfico na tradição brasileira. Longe de um determinismo romântico, Plínio articula a paisagem como origem vocacional e ponto de partida para a missão histórica. A obra deve ser lida à luz da tradição portuguesa e cristã, evitando interpretações reducionistas que a enquadram apenas como nacionalismo cultural.

TUAN, Yi-Fu. Romantic Geography: In Search of the Sublime Landscape.

Análise sofisticada da sensibilidade romântica aplicada à geografia. Tuan descreve como o sublime molda a percepção moderna da paisagem, oferecendo instrumentos analíticos valiosos para diagnosticar o processo de estetização da natureza. Sua abordagem é descritiva, não normativa, o que torna o livro especialmente útil como contraponto crítico ao providencialismo cristão.

TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History.

Clássico sobre o papel da fronteira na formação do imaginário político americano. Turner exemplifica como a geografia pode ser elevada a princípio formador da identidade nacional. A leitura é indispensável para contrastar o mito da fronteira imanentista com a concepção portuguesa de expansão como missão cristã.

ROYCE, Josiah. A Filosofia da Lealdade.

Obra recomendada para compreender como a fidelidade a uma causa transcendente pode evitar tanto o individualismo quanto o nacionalismo idolátrico. Royce oferece uma chave filosófica para pensar pertencimento e missão sem aprisionamento territorial, dialogando de modo indireto com o problema da geografia e da identidade.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.

Texto clássico para entender os processos de sacralização do espaço. Eliade ajuda a distinguir entre a sacralidade autêntica, fundada na hierofania, e suas substituições modernas, nas quais a terra, a nação ou a paisagem ocupam indevidamente o lugar do sagrado.

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições.

Ensaio filosófico que problematiza a ruptura moderna entre imaginação, verdade e transcendência. A obra é útil para compreender o pano de fundo metafísico da crítica ao Romantismo e à imanentização da história, oferecendo categorias que iluminam o contraste entre comunidades imaginadas e comunidades fundadas na verdade.

MARSHALL, Tim. Prisioneiros da Geografia.

Livro representativo do retorno contemporâneo do determinismo geográfico em chave jornalística e geopolítica. Embora ofereça descrições claras das limitações físicas impostas pela geografia aos Estados, a obra tende a absolutizar esses condicionantes, sendo exemplar do risco moderno de transformar o espaço em destino. Sua leitura é especialmente útil como contraponto crítico ao providencialismo cristão, pois evidencia como a geografia, quando separada da transcendência, facilmente se converte em prisão intelectual.

SARDINHA, António. A Aliança Peninsular.

Autor central do integralismo lusitano, Sardinha oferece uma reflexão histórica e espiritual sobre Portugal e Espanha fundada na tradição católica. Sua obra contribui para compreender a concepção portuguesa de história como missão e fidelidade, em contraste com nacionalismos modernos de matriz romântica e imanentista.

QUENTAL, Antero de. Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.

Texto incontornável para entender o debate português sobre identidade, decadência e missão histórica. Embora marcado por tensões modernas, Antero fornece o pano de fundo crítico que ajuda a situar as respostas providencialistas posteriores, inclusive aquelas que retomam a tradição católica como eixo interpretativo.

CORTESÃO, Jaime. A Formação de Portugal.

Historiador fundamental para a compreensão da gênese territorial e espiritual de Portugal. Cortesão mostra como expansão, navegação e identidade nacional se articulam historicamente, oferecendo base empírica sólida para a leitura providencial da experiência portuguesa.

CIDADE, Hernâni. A Ideia de Pátria na Literatura Portuguesa.

Obra essencial para compreender como a pátria foi pensada na literatura portuguesa para além do Romantismo tardio. Hernâni Cidade permite distinguir entre patriotismo enraizado na tradição cristã e formas modernas de nacionalismo sentimental desvinculadas da transcendência.

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