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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Geopolítica e Geocentrismo: convergências estruturais entre poder, espaço e ordem do mundo

1. Introdução

Embora pertençam a campos distintos — a geopolítica às ciências políticas e o geocentrismo à história das ciências e à cosmologia — ambos os conceitos compartilham uma preocupação fundamental: determinar quem ocupa o centro de uma ordem estrutural e como esse centro organiza as relações periféricas. Essa noção de centralidade não é apenas descritiva, mas normativa; define hierarquias, legitimidades, direções de movimento e a distribuição de poder.

Este artigo examina como estruturas geocêntricas — no sentido amplo, simbólico e epistêmico — reaparecem na geopolítica moderna, moldando imaginários de poder, dinâmicas imperiais e concepções ideológicas de espaço.

2. Geocentrismo: muito além da astronomia

O geocentrismo, formulado com sofisticação filosófico-científica por Aristóteles e Ptolomeu, não representava apenas um modelo astronômico; tratava-se de um sistema de ordenação do cosmos, no qual:

  • o centro é dotado de valor metafísico,

  • a periferia é subordinada em movimento e função,

  • há hierarquias fixas entre esferas,

  • existe uma compreensão do movimento como relação de dependência.

O geocentrismo é, portanto, um modelo de organização simbólica do mundo. Sua superação científica não eliminou sua força cultural. Muitas estruturas sociopolíticas continuam organizadas em torno de centros privilegiados que irradiam normas, cultura e comando.

3. Geopolítica: a disputa pelo centro da Terra

A geopolítica, enquanto estudo das relações de poder distribuídas no espaço, trabalha essencialmente com três categorias:

  1. centros de poder (Estados hegemônicos, polos civilizacionais),

  2. periferias subordinadas,

  3. forças dinâmicas que reconfiguram o espaço (comércio, tecnologia, doutrina militar, imigração, geoeconomia).

Esse raciocínio já aparece em:

  • Halford Mackinder e a tese do Heartland: quem controla o “centro” (a Eurásia interior) controla o mundo.

  • Nicholas Spykman e o Rimland: desloca o centro para as bordas marítimas, redefinindo a periferia ativa.

  • Karl Haushofer e a geopolítica continental alemã: a busca por um "centro" germânico que organize a Europa.

Todos esses autores lidam com estruturas de centralidade semelhantes às do imaginário geocêntrico: um ponto nodal que determina o movimento do todo.

4. Estrutura geocêntrica como padrão cognitivo da política internacional

É possível identificar paralelos diretos entre a lógica geocêntrica e a lógica geopolítica:

4.1. A busca humana por centralidade

Civilizações tendem a se imaginar como o “centro”:

  • O Zhongguo chinês (“Reino do Meio”) literaliza essa noção.

  • O Império Romano era o umbilicus mundi.

  • A cristandade medieval via Jerusalém como o centro teológico e geográfico.

  • Os EUA, após 1945, projetaram-se como "global center of gravity".

O geocentrismo, enquanto arquétipo cognitivo, fornece o molde pelo qual sociedades definem sua posição na ordem mundial.

4.2. Hegemonia como geocentrismo político

O centro geopolítico funciona como:

  • definidor de normas (direito internacional, padrões técnicos, moedas de reserva),

  • emissor de cultura (soft power),

  • coordenador de fluxos (financeiros, comerciais, tecnológicos).

A hegemonia, portanto, assume uma posição geocêntrica: outros orbitam o centro.

4.3. Periferias como esferas ptolomaicas

Tal como as esferas celestes no modelo ptolomaico possuíam funções diferenciadas, também na geopolítica:

  • periferias produtivas,

  • periferias extrativas,

  • periferias militares,

  • periferias tecnológicas.

Todas são organizadas em torno de um núcleo que comanda a dinâmica do sistema.

5. O geocentrismo como metáfora estruturante do imperialismo

A maioria dos imperialismos opera sob uma retórica de centralidade:

  • o centro civiliza a periferia,

  • o centro distribui racionalidade ao mundo,

  • o centro possui missão histórica universal.

A Pax Britannica e a Pax Americana são expressões dessa autoposição no centro do sistema internacional.

6. Geocentrismo nas disputas contemporâneas

6.1. EUA vs. China: um conflito entre centros

Cada potência constrói uma autoconcepção de centralidade:

  • Os EUA se veem como centro liberal-democrático global.

  • A China reivindica ser o verdadeiro centro civilizacional e tecnológico da Eurásia.

O conflito não é apenas material, mas cosmológico: trata-se de definir qual centro organiza o sistema internacional.

6.2. Multipolaridade como modelo pós-geocêntrico

A multipolaridade pode ser entendida como:

  • um deslocamento do geocentrismo para o heliocentrismo (vários focos de gravidade),

  • a dissolução da ideia de um único centro,

  • a coexistência de diversos polos com forças equivalentes.

A atual ordem internacional aproxima-se mais de um modelo cosmológico copernicano, em que ninguém detém a centralidade absoluta, e o poder é distribuído entre vários corpos gravitacionais.

7. Implicações filosóficas: a política como cosmologia

A relação entre geopolítica e geocentrismo é mais do que uma analogia: ambos são modos de compreender ordem, movimento e hierarquia. A política internacional continua estruturada por categorias cosmológicas herdadas:

  • centro,

  • periferia,

  • hierarquia,

  • gravidade,

  • órbita,

  • massa crítica.

Essas metáforas moldam não apenas discursos, mas decisões estratégicas.

8. Conclusão

A relação entre geopolítica e geocentrismo evidencia que modelos cosmológicos, mesmo depois de cientificamente superados, continuam operando como estruturas mentais, culturais e simbólicas no entendimento da ordem mundial. A centralidade, enquanto categoria de poder, mantém-se no coração da política internacional. Entender suas raízes geocêntricas ajuda a compreender como Estados constroem sua identidade, justificam ambições e organizam suas pretensões normativas sobre o mundo.

No fundo, toda geopolítica é, em alguma medida, uma cosmologia aplicada: uma disputa por definir quem está no centro e quem orbita quem.

Bibliografia comentada

Aristóteles – De Caelo

Fundamento filosófico do geocentrismo: apresenta a noção de centro como lugar natural dos corpos pesados e estrutura uma cosmologia hierárquica que influenciou toda a tradição ocidental.

Ptolomeu – Almagesto

Obra técnica monumental que consolida o geocentrismo como modelo matemático. Sua estrutura de esferas e epiciclos fornece o arquétipo para a ideia de centros que organizam sistemas complexos.

Halford J. Mackinder – The Geographical Pivot of History

Artigo seminal da geopolítica moderna. Mackinder introduz o conceito de Heartland como centro geopolítico do mundo, uma transposição explícita da lógica geocêntrica para a política internacional.

Nicholas Spykman – The Geography of the Peace

Reinterpreta a centralidade geopolítica deslocando-a para o Rimland. Sua análise reforça que a disputa pelo “centro” é dinâmica e historicamente variável.

Karl Haushofer – Bausteine zur Geopolitik

Representante da escola geopolítica alemã. Trabalha com a ideia de blocos de poder estruturados em torno de centros civilizacionais e estratégicos.

Fernand Braudel – A Dinâmica do Capitalismo

Explora como diferentes centros econômicos emergem, desaparecem e competem entre si ao longo da História. Oferece uma perspectiva de longa duração sobre a migração de centros de gravidade globais.

Zhang Weiwei – The China Wave

Apresenta a autoconcepção chinesa contemporânea de centralidade civilizacional, útil para entender a disputa geopolítica atual sob uma ótica que se aproxima da lógica geocêntrica. 

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