Na sociedade contemporânea, observa-se um distanciamento crescente entre valor e utilidade. Muitos objetos e práticas carregam um valor profundo, mas são tratados como meros instrumentos ou resíduos. Um exemplo emblemático dessa dissociação é o destino dado às cinzas dos falecidos. Quando atiradas ao mar ou descartadas sem cuidado, essas cinzas passam a ser meros dejetos, privados de seu valor memorial e simbólico.
No entanto, é possível integrar valor e utilidade, e dar às cinzas um propósito que respeite tanto a memória da pessoa quanto a fecundidade da vida. Ao utilizá-las como adubo para plantas, cria-se um gesto que une múltiplas dimensões:
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Valor memorial: A cinza deixa de ser pó indiferente e se torna símbolo vivo do ente querido. Cada planta fertilizada com essas cinzas representa a pessoa, preservando sua lembrança de forma concreta e continuada.
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Utilidade prática: A função material das cinzas é potencializada — elas alimentam a terra, permitindo que frutos, flores e árvores cresçam. Esse gesto reafirma o princípio fisiocrata de que a agricultura é a base das riquezas, transformando a memória em sustento real.
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Dimensão ética e espiritual: O cuidado com a planta, realizado com atenção e carinho, reflete o amor e o respeito pelo falecido. Nos méritos de Cristo, a ação se torna um ato de santificação: prolonga-se a vida e multiplica-se a dignidade humana por meio da natureza.
Essa prática oferece uma lição econômica e filosófica. Diferentemente da economia moderna, que muitas vezes separa valor subjetivo e utilidade objetiva, aqui essas dimensões se reconciliam: o valor não é abstraído, nem a utilidade é desprovida de significado. Ao contrário, o gesto cria uma sinergia entre memória, economia e espiritualidade.
Além disso, há uma conexão profunda com a tradição austríaca de economia. Para Carl Menger e seus discípulos, o valor é subjetivo, dependendo da percepção humana. Quando a sociedade reconhece a dignidade das cinzas, elas não são apenas matéria inerte, mas bem com valor real. O ato de fertilizar a terra com esse material simboliza a reconciliação entre a percepção subjetiva do valor e a utilidade objetiva do recurso.
Finalmente, a ação recupera o espírito fisiocrata, que via na terra a fonte primeira de riqueza e na agricultura o fundamento da ordem social. As cinzas, ao nutrirem a terra, se tornam instrumentos de produção, não apenas econômica, mas moral e espiritual, demonstrando que o cuidado com a vida e a memória pode ser simultaneamente fecundo e reverente.
Em síntese, transformar cinzas em adubo é mais do que um gesto prático: é um ato de integração de valor e utilidade, de preservação da memória, de respeito à vida e de realização de princípios econômicos e espirituais. É a prova de que a riqueza verdadeira não se mede apenas em bens materiais, mas na capacidade de perpetuar dignidade, memória e vida, nos méritos de Cristo.
Bibliografia Comentada
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Menger, Carl. Grundsätze der Volkswirtschaftslehre (Princípios de Economia Política), 1871.
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Obra fundadora da Escola Austríaca de Economia. Menger enfatiza o valor subjetivo, mostrando que o valor não reside nos objetos em si, mas na percepção e importância atribuída pelos indivíduos. No contexto do artigo, fundamenta a ideia de que as cinzas ganham valor quando reconhecidas como memorial.
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Quesnay, François. Tableau Économique, 1758.
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Fundamento da fisiocracia, que considerava a agricultura a base da riqueza. O uso das cinzas como adubo se alinha à visão fisiocrata de que a terra é fonte de sustento e de fecundidade econômica.
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Schmoller, Gustav. Grundriss der allgemeinen Volkswirtschaftslehre (Esboço da Economia Geral), 1883.
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Representante da Escola Histórica Alemã, Schmoller defendia que o valor econômico estava intrinsecamente ligado à história, cultura e contexto social. O artigo dialoga com sua perspectiva ao reconhecer que o valor das cinzas depende do significado cultural e memorial atribuído a elas.
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Hayek, Friedrich A. Individualism and Economic Order, 1948.
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Embora posterior, Hayek reforça a importância da ordem espontânea e da percepção subjetiva na economia. Aplica-se à ideia de que o cuidado com a planta, nutrida pelas cinzas, é um gesto individual que cria valor social e espiritual de forma orgânica.
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Bove, Jean-Michel. L’Homme et la Terre, 1995.
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Explora a relação simbólica entre o ser humano e a terra, enfatizando o ciclo de vida, morte e fertilidade. Apoia a dimensão ética e espiritual do uso das cinzas como adubo, ligando memória e natureza.
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