Introdução
A abolição da escravidão no Brasil (1888) foi uma conquista moral e jurídica inegável. Ainda assim, a República recém-instaurada (1889) falhou em promover a real integração dos libertos — perpetuando desigualdades e exclusão que ecoam até hoje. Este artigo explora uma hipótese literária contrafactual: e se os abolicionistas e os libertos tivessem suas memórias preservadas de modo radical — não pelo esquecimento ou vilipêndio simbólico, mas por meio da cremação transformadora de suas cinzas em adubo para plantações de algodão — um verdadeiro “plantation do bem”? Através dessa alegoria, propomos repensar o papel da memória na construção de uma civilização justa e digna.
O esquecimento republicano e a proposta de ressurreição simbólica
Na República emergente, havia uma clara tendência ao rompimento com os símbolos do passado, muitas vezes reduzindo a presença dos mortos na memória coletiva. Manoel de Barros certa vez escreveu que viver era “tornar visível aquilo que o tempo teoriza”. No cenário imaginário proposto, a cremação dos abolicionistas e libertos não representaria apagamento, mas sim fertilidade — uma ressurreição simbólica pelo cultivo da vida, invertendo o mecanismo do esquecimento.
O “plantation do bem” como subversão simbólica
-
O plantation, ícone máximo da escravidão, é subvertido: o campo torna-se lugar de redenção, santificação e honra.
-
O algodão, antes símbolo da exploração, converte-se em tecido da memória e da dignidade.
-
A produção de conjuntos de vestuário — camisa e calça — vindos de 13 plantas evoca Cristo e seus apóstolos, estabelecendo um paralelo entre santificação e trabalho.
-
Vestir-se desses tecidos seria, ao mesmo tempo, revestir-se da luta abolicionista e participar de um vínculo vivo com o passado glorioso dos que lutaram pela liberdade.
Revolução Industrial e a construção de um Império da Boa Sociedade
Neste romance histórico alternativo:
-
Industrias de beneficiamento e exportação de algodão memorial nascem como extensão da memória coletiva, não apenas da economia.
-
Surge o que chamei de “Império da Boa Sociedade”: um modelo de civilização em que o progresso técnico (revolução industrial) se conjuga à moralidade cristã, produzindo riqueza e justiça de forma simultânea.
-
Os recursos resultantes são investidos em educação, moradia e projetos sociais, impulsionando a verdadeira integração dos descendentes de escravizados — não por concessão, mas como consequência natural de uma economia fundada na memória e na dignidade.
O livro O Império da Boa Sociedade no contexto histórico
O título dessa obra — O Império da Boa Sociedade: A Consolidação do Estado Imperial Brasileiro, de Ilmar Rohloff de Mattos e Márcia de Almeida Gonçalves — propõe uma retomada dos documentos e ideais que moldaram o Estado imperial, explorando as tensões entre elites, imigrantes e escravizados na formação do Brasil do século XIX lemad.fflch.usp.brApaixonados por História.
A expressão "boa sociedade" nesse volume remete ao ideal de uma civilização ordenada e honrosa — um contraponto ao “Império da Boa Sociedade” imaginado aqui, que se ergue sobre lembrança, justiça e trabalho. A utilização dessa referência bibliográfica reforça o diálogo entre história real e imaginação histórica que a ficção propõe
A literatura como crítica e profecia
Machado de Assis, em seus romances realistas, expôs com ironia o horizonte limitado das elites brasileiras. Sua escrita revelou um país incapaz de ver além dos próprios privilégios. O romance imaginado aqui se apresenta como uma imaginação histórica profética — expandindo o que poderia ter sido, ao mesmo tempo em que denuncia a amnésia estrutural que impede o Brasil de aprender com seu passado.
Conclusão
A concepção de um “plantation do bem”, adubado literalmente pelas cinzas dos abolicionistas, dos libertos e seus descendentes, ultrapassa a mera metáfora literária: é um convite à reflexão sobre a relevância da memória — ativa e viva — na construção de um país mais justo. O esquecimento, como sabemos, gera exclusão; a memória fértil, porém, pode tecer os fundamentos de uma sociedade renovada. Afinal, se vestimos nossa história, vestimos também nossa dignidade.
Bibliografia sugerida
-
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.
-
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
-
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2002 [1933].
-
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.
-
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
-
MATTOS, Ilmar Rohloff de; GONÇALVES, Márcia de Almeida. O Império da Boa Sociedade: A consolidação do Estado Imperial Brasileiro. São Paulo: Atual, 1991.
-
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
-
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Nenhum comentário:
Postar um comentário