A morte de um ente querido é um momento de dor intensa, mas também de reflexão sobre como honrar a vida que se foi. No Rio de Janeiro, onde resido, essa responsabilidade se torna particularmente desafiadora. Muitos cemitérios da cidade têm se mostrado vulneráveis à ação pública, que, em vez de proteger, pode expor os mortos ao vilipêndio, afrontando a memória e a dignidade das famílias.
Diante dessa realidade, minha família optou pela cremação de meu pai no Jardim da Saudade, na Sulacap. As cinzas, longe de serem descartadas, foram utilizadas para nutrir as plantas do próprio cemitério. Essa decisão, embora conflituosa à luz do cristianismo tradicional — que veda a cremação —, representou um mal menor diante da possibilidade de violação da dignidade do corpo.
Mas a experiência sugere algo ainda mais profundo: a transformação da matéria em vida. Se eu tivesse um jardim, faria das cinzas de meus entes queridos adubo para plantas, quem sabe uma árvore frutífera. Do fruto dessa árvore, nutrido pelas cinzas, eu me alimentaria, como os povos indígenas fazem em certos rituais de assimilação simbólica. É um canibalismo indireto, mas de reverência e memória, não de violência. Cada fruto, cada folha, cada flor seria uma ponte viva entre passado e presente, entre morte e vida, uma extensão concreta do legado daqueles que amamos.
Essa prática nos ensina que a morte não precisa ser passiva, e a memória não precisa ser apenas sentimental. Ela pode ser ativa, tangível, nutrir a vida ao redor e prolongar, de forma simbólica, as qualidades e virtudes dos que partiram. Do mal inevitável da morte, pode emergir um bem — a continuidade da vida, a preservação da memória e a afirmação de que o amor verdadeiro transcende o corpo físico.
No Jardim da Saudade, essa transição torna-se visível: o corpo de meu pai, transformado em cinzas, nutre o espaço, perpetua-se nas plantas e mantém viva a lembrança de quem ele foi. O mal menor da cremação se converte, assim, em um bem maior: a dignidade, o respeito e a memória que continuam a existir de forma concreta, sensível e viva.
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