Em uma sociedade onde todos são historiadores e biógrafos uns dos outros, a justiça se funda na memória coletiva. Cada indivíduo, cada ato relevante à vida social e jurídica, é registrado e preservado. O juiz, diante desses registros, não precisa de longas investigações: basta a verificação do testemundo. Quando se trata de um servidor público, sua autoridade decorre da fé pública, exceto se houver indícios de contaminação ideológica ou herética, capazes de distorcer a verdade e gerar falsidade documental. Nesse ambiente, as vítimas não são esquecidas; a consciência coletiva mantém vivos os fatos, tornando a prescrição quase inexistente, pois os crimes permanecem presentes na memória social (Ricoeur, 2000).
Mais do que registros formais, é possível imaginar uma sociedade em que a virtude exemplar se torna o alicerce da justiça. O homem mais virtuoso, aquele que imita sistematicamente Cristo, é documentado em seus atos e comportamentos, tornando-se modelo público para a comunidade. Seus feitos não são apenas inspiração moral: eles se convertem em referência jurídica, orientando o comportamento dos demais e criando um ciclo virtuoso de instrução ética (Hursthouse, 1999; Royce, 1908). A justiça, nesse cenário, não se reduz a regras abstratas; ela se realiza na prática diária da virtude, nos méritos de Cristo (Leão XIII, 1891).
Dentro desse contexto, a prescrição deixa de ser um mecanismo técnico neutro e revela seu caráter injusto. Historicamente, ela tem servido para proteger os poderosos e perpetuar a impunidade, esquecendo o dano causado às vítimas. Como observou Bolsonaro, “pela ignorância, o povo pereceu” — a prescrição atua de maneira similar, permitindo que crimes se apaguem na ausência de memória ou de vigilância ética (Bobbio, 1992; Gros, 2013). Por contraste, uma sociedade virtuosa transforma a lembrança documentada e a prática moral em antídotos contra a impunidade, tornando impossível que crimes graves fiquem sem responsabilização (Ricoeur, 2000).
A lei, nesse modelo, cumpre aquilo que Bastiat defendeu: ela se torna mecanismo coletivo de legítima defesa, protegendo os indivíduos sem se tornar instrumento de espoliação (Bastiat, 1850). O problema da perversão da lei se resolve quando se resolve o problema do esquecimento coletivo: crimes e injustiças só persistem na impunidade quando fatos relevantes se perdem na memória social ou não são devidamente registrados. Assim, a memória coletiva garante que a lei seja aplicada com justiça, verdade e coerência.
Quando registros e memória se combinam com a prática virtuosa, a sociedade se torna autossustentável juridicamente e moralmente. A verdadeira justiça não é apenas aplicação de normas, mas restauração da ordem virtuosa em Cristo, em que a memória das vítimas é preservada, os atos virtuosos guiam o comportamento social e a prescrição deixa de ser um instrumento de injustiça (Turner, 1920; Hursthouse, 1999).
Bibliografia
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Bastiat, Frédéric. A Lei. Paris: Guillaumin, 1850.
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Bobbio, Norberto. Lei, Moralidade e Poder. Brasília: Editora Universidade, 1992.
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Gros, Frédéric. Sobre a Verdade e a Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Hursthouse, Rosalind. Virtue Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1999.
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Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.
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Ricoeur, Paul. Memória e Esquecimento. Paris: Éditions du Seuil, 2000.
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Royce, Josiah. A Filosofia da Lealdade. Boston: Houghton Mifflin, 1908.
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Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt, 1920.
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