A identidade carioca é frequentemente associada a símbolos geográficos e culturais de grande impacto — a praia de Copacabana, o Cristo Redentor, o Maracanã ou mesmo as favelas que marcam o imaginário coletivo. Contudo, a vida cotidiana da cidade se sustenta em bairros que não figuram nos cartões-postais, mas que cumprem funções essenciais na integração e no dinamismo urbano. É o caso de Padre Miguel e Pechincha, bairros muitas vezes considerados periféricos ou “de segunda classe”, mas que, na realidade, são altamente estratégicos para a cidade e para o estado do Rio de Janeiro.
A função integradora de Padre Miguel
Padre Miguel, na Zona Oeste, abriga o terminal rodoviário do Buraco do Faim e a estação de trem Guilherme da Silveira, próxima ao estádio do Bangu. Esses dois pontos conferem ao bairro um papel central na mobilidade urbana, permitindo acesso rápido à Zona Sul e a outras partes da cidade. Morar nas proximidades dessas estruturas significa viver em um ponto de conexão que encurta distâncias, garante integração e contribui para a circulação de pessoas e mercadorias.
A centralidade do Pechincha
Já o Pechincha, situado em posição privilegiada entre a Tijuca e a Barra, apresenta uma característica distinta: é um bairro central, atravessado por diversas linhas de ônibus e pontos de táxi. Além da mobilidade, possui um comércio local robusto, que o aproxima de centros tradicionais como Bangu. No Pechincha, a vida econômica não se limita a servir outras regiões: ela sustenta a própria comunidade e atrai fluxos, funcionando como polo de consumo e serviços.
Economia como formadora de identidade
Esses exemplos mostram que a identidade carioca não se define apenas por paisagens icônicas, mas pela função social e econômica desempenhada pelos bairros. O mercado local, a infraestrutura de transporte e a rede de serviços dão ao morador não apenas praticidade, mas também um sentimento de pertencimento.
Aqui se aplica a lógica do economista alemão Friedrich List, formulador do protecionismo educador. Para List, a economia não é apenas troca imediata, mas um instrumento de formação nacional. Segundo ele, “o poder produtivo da nação é mais importante que a riqueza atual”¹. Da mesma forma, bairros como Padre Miguel e Pechincha educam a cidade na integração: mostram que a riqueza verdadeira está na coesão e na construção de uma cidadania concreta.
Autoridade católica e liberdade orientada
A tradição católica reforça essa perspectiva. Para a Igreja, a autoridade legítima não limita a liberdade, mas a ordena em direção ao bem comum. Como afirma Leão XIII na Rerum Novarum (1891), “é necessário que haja alguém que governe, que dirija cada parte à sua devida ordem, cuidando do bem comum”². Aplicado à economia, isso significa que o comércio e os serviços não devem ser guiados apenas pelo lucro, mas por princípios éticos que promovam a dignidade humana e a solidariedade.
Quando um mercado de bairro ou uma estação de trem conecta pessoas, gera acessibilidade e sustenta uma comunidade, ali não está apenas a busca do ganho imediato: está a expressão da liberdade ordenada pela autoridade do bem comum.
Contra o liberalismo abstrato
O liberalismo abstrato, em suas versões conservadora ou progressista, tende a dissolver identidades locais ao reduzir tudo à lógica da crematística — a multiplicação do dinheiro denunciada por Aristóteles³. Essa lógica ignora a realidade concreta das comunidades, que não vivem apenas de capitais em fluxo, mas de vínculos sociais, históricos e culturais.
Ao desprezar bairros como Padre Miguel ou Pechincha como “secundários”, o liberalismo revela sua miopia: não enxerga que neles se encontra parte essencial da vida carioca, da integração urbana e da economia cotidiana.
Conclusão
Padre Miguel e Pechincha demonstram que a identidade carioca é muito mais do que o cartão-postal. Ela se constrói no cotidiano dos mercados locais, nos terminais rodoviários, nas estações de trem, nas linhas de ônibus, no comércio de bairro que sustenta famílias e gera comunidade.
Vista sob a luz do protecionismo educador de List e da filosofia católica da autoridade, essa identidade ganha contornos claros: não é a liberdade abstrata do liberalismo que forma o cidadão carioca, mas a liberdade concreta, aperfeiçoada pela autoridade moral e pela função social da economia.
Assim, longe de serem bairros de segunda classe, Padre Miguel e Pechincha são centros vitais de integração e escolas de civilização, onde se aprende que a verdadeira riqueza não está apenas no capital acumulado, mas na vida comum que se constrói e se renova todos os dias.
Notas de Rodapé
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LIST, Friedrich. Das nationale System der politischen Ökonomie. Stuttgart/Tübingen: Cotta, 1841, p. 105.
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LEÃO XIII. Rerum Novarum. Roma, 1891, §32.
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ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1997, I, 1257b.
Referências
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ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1997.
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LIST, Friedrich. Das nationale System der politischen Ökonomie. Stuttgart/Tübingen: Cotta, 1841.
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LEÃO XIII. Rerum Novarum. Roma, 1891.
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PIO XI. Quadragesimo Anno. Roma, 1931.
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BENTO XVI. Caritas in Veritate. Roma, 2009.
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SCHUMPETER, Joseph. History of Economic Analysis. Oxford: Oxford University Press, 1954.
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