O debate sobre os limites entre responsabilidade política e responsabilidade penal de autoridades públicas é um dos mais instigantes do Direito Constitucional e Penal. No Brasil, a distinção entre crime de responsabilidade e crime comum foi historicamente consolidada, mas sua manutenção tem gerado controvérsias, sobretudo quando se observa como outros sistemas jurídicos, como o alemão, tratam a mesma questão.
1. O sistema brasileiro: crime de responsabilidade como categoria autônoma
A Constituição de 1988, seguindo tradições das Cartas anteriores, prevê em seu artigo 85 que certas condutas de autoridades — como atentar contra o livre exercício do Poder Legislativo — configuram crimes de responsabilidade. Estes não são julgados pelo Poder Judiciário, mas sim pelo Senado Federal em processo de natureza política (o impeachment).
Paralelamente, o Código Penal tipifica condutas funcionais, como a prevaricação (art. 319), que pune o agente público que retarda ou deixa de praticar ato de ofício por interesse ou sentimento pessoal.
Assim, o ordenamento brasileiro cria dois regimes distintos:
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Crime comum → natureza penal, julgado pelo Judiciário.
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Crime de responsabilidade → natureza político-administrativa, julgado pelo Senado.
Essa separação foi pensada como mecanismo de proteção da independência entre os Poderes. No entanto, na prática, frequentemente resulta em politização excessiva da responsabilização, com a punição ou absolvição dependendo mais de conjunturas políticas do que do mérito jurídico.
2. O caso concreto: omissão do presidente do Senado
Suponhamos um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados por maioria absoluta (mais de 257 votos), em regime de urgência. Nesse caso, a Constituição e os regimentos parlamentares impõem ao Senado o dever de apreciar a matéria dentro de prazo razoável.
Se o presidente do Senado, por conveniência política ou interesse pessoal, se recusar a pautar o projeto, pode-se falar em duas consequências:
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Responsabilidade política: omissão dolosa pode configurar crime de responsabilidade, passível de impeachment.
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Prevaricação em tese: há quem sustente que a recusa se enquadra no art. 319 do Código Penal, pois o presidente teria deixado de praticar ato de ofício por conveniência pessoal.
A interpretação predominante, porém, é que se trata de crime de responsabilidade, não de prevaricação, justamente porque a conduta envolve o exercício da função institucional de chefe de Poder.
3. O contraste com o direito penal alemão
O StGB (Strafgesetzbuch), Código Penal alemão, adota a chamada tese funcional: crimes cometidos por agentes públicos são tratados como Amtsdelikte (delitos de função). O núcleo da ilicitude está na quebra do dever funcional, sem a rígida separação entre responsabilidade política e responsabilidade penal.
Na Alemanha, portanto, a omissão dolosa de um presidente de parlamento em cumprir seu dever constitucional não seria apenas matéria política, mas sim delito funcional penalmente relevante.
Isso significa que, ao contrário do Brasil, a responsabilização não dependeria da vontade política de seus pares (impeachment), mas poderia ser diretamente apreciada pela Justiça penal.
4. A hipótese de uma prevaricação qualificada no Brasil
Se o Brasil adotasse a lógica do direito penal alemão, o que hoje se denomina crime de responsabilidade se transformaria em uma espécie de prevaricação qualificada.
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O agente público deixa de praticar ato de ofício constitucionalmente obrigatório (pautar projeto em urgência).
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A violação funcional não é apenas irregularidade política, mas crime penal.
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A sanção não dependeria do crivo político do Senado, mas do julgamento do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição.
Essa mudança teria enorme impacto institucional: reduziria o espaço de acomodações políticas, fortaleceria a proteção imediata da ordem constitucional e traria maior previsibilidade jurídica na responsabilização de autoridades.
5. Considerações finais
O modelo brasileiro, ao separar crimes comuns e de responsabilidade, busca preservar a independência entre os Poderes, mas acaba abrindo margem para impunidade e seletividade política. Já o modelo alemão, ao tratar a violação funcional como crime penal, reforça o caráter jurídico da responsabilização, mas reduz a margem de discricionariedade política.
A reflexão sobre uma possível prevaricação qualificada no Brasil, inspirada no direito alemão, aponta para um dilema fundamental: até que ponto devemos deixar a responsabilização de autoridades na esfera política e até que ponto devemos juridicizá-la?
Esse debate, longe de ser apenas técnico, toca no coração da democracia constitucional brasileira.
Jurisprudência relevante
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STF, MS 24.831/DF, Rel. Min. Celso de Mello (2005): firmou que a omissão do presidente do Senado em dar seguimento a pedidos de impeachment pode configurar ato de natureza político-administrativa, sujeito a controle excepcional pelo Judiciário.
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STF, ADPF 378/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso (2016): sobre o rito do impeachment, reforçando que crimes de responsabilidade possuem natureza política, mas devem respeitar balizas constitucionais.
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STF, Inq. 672/DF, Rel. Min. Carlos Velloso (1994): reforça a distinção entre crime comum e crime de responsabilidade, destacando que este último não é crime penal stricto sensu.
Bibliografia
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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner Teil. 5. Aufl. Berlin: Duncker & Humblot, 1996.
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