Resumo
Este artigo discorre sobre dever moral de um advogado, já financeiramente independente, de exercer a advocacia pro bono em defesa de inocentes perseguidos pelo Estado. A partir de três tradições — o direito romano, a doutrina social da Igreja e a retórica dos grandes juristas brasileiros — argumenta-se que a defesa gratuita e voluntária de vítimas da injustiça estatal, como os presos políticos de 8 de janeiro, é uma manifestação superior de cidadania, caridade e fidelidade à verdade. Conclui-se que, nos méritos de Cristo, a justiça feita gratuitamente se torna expressão de honra.
1. Enunciado
“Se o capital acumulado pelo trabalho honesto é suficiente para garantir uma vida digna sem a necessidade de novos ganhos, então a advocacia pro bono deixa de ser uma exceção para se tornar um dever de honra — sobretudo quando se trata da defesa de vítimas de um Estado que perdeu a justa medida entre justiça e vingança, como os perseguidos do 8 de janeiro.”
2. O patrocínio gratuito no Direito Romano
A figura do patronus na Roma Antiga não exercia a advocacia como um meio de subsistência. O vínculo entre o patrono e o cliente era regido por um ideal de fidelidade (fides) e de honra cívica, e não por uma relação comercial.
O patrocinium gratuitum era a regra, não a exceção. A prática de cobrar pelo patrocínio legal foi inicialmente considerada indigna e contrária à moral republicana. Segundo Tácito:
“A eloquência perde seu valor quando se transforma em moeda.” (TÁCITO, Anais, XI, 5)
Assim, o advogado que já possui meios para sustentar sua existência dignamente deve, por honra, usar seu saber jurídico como instrumento de libertação dos inocentes. Neste espírito, o capital acumulado serve ao bem comum.
3. A Doutrina Social da Igreja e o apostolado jurídico
A Rerum Novarum, de Leão XIII (1891), afirma que a propriedade privada é legítima, desde que usada conforme sua função social e moral (LEÃO XIII, 1891). Já na Quadragesimo Anno, Pio XI destaca:
“A justiça deve ser animada pela caridade; sem caridade, ela seca.” (PIO XI, 1931, n. 137)
Quando o advogado não necessita mais trabalhar por dinheiro, sua atuação jurídica passa a ser um apostolado, isto é, uma forma de amor aplicado à estrutura da justiça humana. A defesa dos inocentes, especialmente os perseguidos pelo arbítrio do Estado, torna-se, portanto, exercício de caridade e testemunho público da verdade.
Neste ponto, é legítimo afirmar que a advocacia pro bono é a forma jurídica do mandamento do amor ao próximo (cf. Mt 22,39).
4. Rui Barbosa e Sobral Pinto: dois exemplos de justiça combativa
A história da advocacia brasileira oferece testemunhos luminosos da ligação entre justiça e coragem moral.
4.1 Rui Barbosa
Rui Barbosa via a justiça como condição de existência da liberdade:
“A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.” (BARBOSA, 1911, p. 121)
E mais:
“A advocacia não é profissão de covardes.” (Idem, ibidem)
Para Rui, a defesa do inocente era mais que profissão: era missão civilizacional.
4.2 Sobral Pinto
Sobral Pinto, ao defender o preso político Luís Carlos Prestes na ditadura Vargas, recorreu à Lei de Proteção aos Animais para denunciar maus-tratos sofridos na prisão:
“Se o Estado se comporta como bicho, então lhe aplico a lei dos bichos.” (PINTO, apud GASPARI, 2002, p. 86)
Esse gesto extremo é sinal da honra que recai sobre o advogado quando o Estado perde o pudor do direito. O advogado torna-se, então, a última linha de defesa entre o cidadão e o Leviatã.
5. Considerações Finais
A advocacia, quando liberta da necessidade financeira, se transforma em um sacerdócio civil. O capital acumulado legitimamente se torna meio para realizar justiça gratuita, como expressão de honra diante dos homens e de fidelidade diante de Deus.
Defender os perseguidos políticos do 8 de janeiro, em particular, é reconhecer o uso ideológico do sistema penal como forma de repressão institucionalizada. É, portanto, um gesto de sanidade jurídica, coragem moral e amor evangélico.
Referências
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Martin Claret, 2001.
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
LEÃO XIII. Rerum Novarum: encíclica sobre a condição dos operários. Vaticano, 1891.
PIO XI. Quadragesimo Anno: encíclica sobre a restauração da ordem social. Vaticano, 1931.
TÁCITO. Anais. Tradução de Maria José de Carvalho. São Paulo: Editora Edipro, 2016.
Notas de Rodapé
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O patrocinium gratuitum foi abolido formalmente no período imperial, mas permaneceu como ideal moral e cultural da advocacia romana.
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Em diversas universidades medievais, como Bolonha, o ensino do Direito retomou a tradição de não cobrar por defesas judiciais em causas públicas.
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A atuação de Sobral Pinto inspirou diversas gerações de advogados cristãos, sendo citada como paradigma de justiça combativa.