A morte, em sua aparente definitividade, abre espaço para símbolos que transcendem a perda e revelam novos modos de presença. Entre esses símbolos, a imagem de um jardim construído a partir da memória dos entes queridos ocupa um lugar privilegiado: nele, a vida não apenas retorna à terra, mas renasce em forma de cuidado, beleza e alimento. Quando se aduba um algodoeiro com as cinzas de alguém que partiu, planta-se também a memória desse ser. E quando, do algodão colhido, se tece uma camisa, o ato de vestir deixa de ser apenas uma função prática e passa a ser sacramental: é a vida do falecido que, transformada, se coloca sobre o corpo do vivo.
Vestir uma camisa assim é assumir, de modo literal, a continuidade da existência dos que nos precederam. Não se trata apenas de honrar a lembrança, mas de incorporá-la ao próprio gesto, como quem carrega consigo uma segunda pele feita de história, afeto e princípios. E se esses entes queridos foram intelectuais, o ato se amplia ainda mais: vestir sua fibra é também vestir suas ideias, seus princípios, suas lutas. É tomar para si o peso e a dignidade daquilo que eles sustentaram, dando continuidade ao fio de pensamento que não pode ser interrompido pela morte.
Aqui encontramos uma imagem singular da anticrese, instituto jurídico pelo qual o credor assume a posse dos frutos do bem dado em garantia até que a dívida se cumpra. Transposto ao campo da literatura espiritual, o mecanismo revela uma analogia potente: ao herdar os frutos intelectuais e morais de nossos mortos, colocamo-nos em sua posição. O que eles semearam em vida passa a ser colhido por nós, seus sucessores. Somos, por assim dizer, credores de uma herança espiritual que nos é confiada, e ao vesti-la, tornamo-nos responsáveis por levá-la adiante.
Mas há ainda um nível mais profundo: o de assumir a perspectiva de segunda pessoa. Quando vestimos a camisa dos nossos mortos, não apenas recordamos sua presença (terceira pessoa), nem apenas falamos de nós mesmos em relação a eles (primeira pessoa), mas passamos a enxergar o mundo tal como eles o viam. Esse é o exercício espiritual de colocar-se no lugar do outro, de adotar seu olhar, sua voz, seu juízo. É o mesmo movimento que Deus fez ao se encarnar em Jesus Cristo: a Palavra eterna não permaneceu distante, mas assumiu a nossa carne, viveu como nós, olhou o mundo a partir de dentro. Ali, a conversão se deu pela proximidade radical, pela perspectiva do “Tu” que se dirige a cada um de nós.
O jardim da memória, portanto, não é apenas lugar de saudade. É espaço de conversão, onde a vida que partiu se torna matéria para a vida presente. É também um ateliê de responsabilidade: quem veste a fibra dos seus não pode deixar de carregar consigo o peso de seus princípios. E é, sobretudo, um caminho de Cristo: assim como Ele nos revestiu de Si mesmo, somos chamados a revestir-nos daquilo que os nossos nos deixaram, enxergando o mundo com um olhar que ultrapassa os limites da carne e nos faz ver o que não se vê.
Bibliografia sugerida
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Bíblia Sagrada
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São Paulo: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14).
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“Todos vós que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Gl 3,27).
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Santo Agostinho
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Confissões, especialmente o Livro X, sobre memória: a memória como espaço onde Deus fala ao homem e onde os mortos permanecem vivos.
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Hans Urs von Balthasar
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Teodramática: sobre a perspectiva da segunda pessoa, a encarnação como o “Tu” de Deus que nos chama ao diálogo.
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Joseph Ratzinger (Bento XVI)
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Introdução ao Cristianismo: sobre a fé como encontro de pessoas, não apenas adesão a ideias abstratas.
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Paul Ricoeur
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A Memória, a História, o Esquecimento: sobre a responsabilidade de guardar a memória como ato ético.
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Maurice Halbwachs
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A Memória Coletiva: a dimensão comunitária da lembrança e sua atualização nos símbolos.
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José de Oliveira Ascensão
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Direito Civil – Reais: para o estudo técnico da anticrese, como base da metáfora literária aqui aplicada.
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