Resumo
Este artigo propõe uma leitura comparativa de três obras centrais para a compreensão da relação entre técnica, lealdade e espaço na construção de impérios: Un imperio de ingenieros (Fernández-Armesto e Lucena Giraldo), The Frontier in American History (Turner) e The Philosophy of Loyalty (Royce). O objetivo é mostrar como a engenharia e o domínio técnico podem ser compreendidos não apenas como instrumentos de poder político, mas como expressões de um serviço espiritual à ordem da Cristandade, particularmente quando inseridos numa economia simbólica fundada na verdade e na missão.
1. Introdução
A modernidade técnica separou a ciência do seu princípio fundador: a servitude ao verdadeiro Deus. No entanto, ao analisar o papel dos engenheiros na formação do Império Hispânico, Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo oferecem uma chave de leitura alternativa à narrativa iluminista: o engenheiro como servo de uma missão imperial teológica. Esta perspectiva se amplia ao ser confrontada com a noção de fronteira em Turner e com o conceito de lealdade em Royce.
2. Un imperio de ingenieros: técnica como extensão do espírito
Fernández-Armesto e Lucena Giraldo (2018) demonstram que o engenheiro não era meramente um técnico, mas um agente civilizador da Monarquia Católica. Ele integrava saberes práticos (cartografia, fortificação, hidráulica) com a ordem política e espiritual, atuando como soldado-letrado, cuja autoridade provinha tanto do domínio técnico quanto da fidelidade à missão régia-cristã.
"Los ingenieros eran también portadores de orden moral y político, ejecutores de una visión católica del mundo." (Fernández-Armesto; Lucena Giraldo, 2018, p. 42)
Essa abordagem ecoa a tradição medieval que não via antagonismo entre fé e razão, mas uma hierarquia: a técnica é boa quando está a serviço da verdade.
3. Turner e a fronteira como mito fundacional
Em The Frontier in American History, Frederick Jackson Turner (1920) propõe que a experiência americana de expansão para o Oeste moldou o caráter democrático e individualista dos EUA. A fronteira, para Turner, não é apenas um limite geográfico, mas um espaço simbólico de renovação social e política.
Contudo, o que falta à tese de Turner é um critério transcendente: sua fronteira é marcada por um ethos protestante e secularizado, fundado no autonomismo espiritual do indivíduo, em contraste com a missão unificadora da Cristandade.
A comparação revela um contraste essencial: enquanto a fronteira hispânica buscava implantar uma ordem católica integrada, a americana multiplicava espaços de disputa e dissolução simbólica, mesmo quando pretendia fundar uma república virtuosa.
4. Royce: lealdade como fundamento da comunidade
Josiah Royce, em The Philosophy of Loyalty (1908), oferece o conceito-chave que une os dois modelos: lealdade como vocação. Para Royce, ser leal é consagrar-se a uma causa mais alta do que o ego, assumindo-a com constância e consciência.
“Loyalty is the willing and practical and thoroughgoing devotion of a person to a cause.” (Royce, 1908, p. 16)
Ora, o engenheiro imperial espanhol é leal à Monarquia Católica como ordem temporal legitimada por uma causa eterna; o pioneiro americano, na leitura de Royce, pode ser leal a uma ideia de liberdade, mas esta frequentemente degenera em mera autonomia, sem transcendência.
Royce serve como ponte crítica: sua filosofia permite avaliar quais lealdades constroem comunidades duráveis e quais apenas as fragmentam.
5. Técnica, lealdade e serviço: o engenheiro como arquétipo católico
Ao confrontar as três obras, emerge uma figura ideal: o engenheiro-cristão como símbolo da santificação pelo trabalho, fiel a uma missão que integra saber técnico, fidelidade política e serviço espiritual. Ele se distingue tanto do “pioneiro liberal” quanto do “tecnocrata moderno”.
Essa síntese remete à ideia patrística de que a criação é um cosmos ordenado, e a técnica deve espelhar essa ordem. A fronteira, então, deixa de ser lugar de evasão para se tornar lugar de missão, e a lealdade, em vez de laço subjetivo, assume seu papel de aliança objetiva com o todo de Deus.
6. A União Ibérica e o espírito de Ourique na formação do engenheiro imperial
Entre 1580 e 1640, Portugal e seus domínios estiveram sob domínio da Monarquia Hispânica. Nesse período, conhecido como União Ibérica, houve não apenas uma fusão política, mas também uma convergência simbólica e espiritual entre o ideal missionário português e a racionalidade técnica espanhola.
Desde a Batalha de Ourique (1139), a fundação da nacionalidade portuguesa esteve marcada por uma teofania: Cristo teria aparecido a Dom Afonso Henriques, confiando-lhe a missão de instaurar um reino a serviço de Deus. Essa visão estabeleceu Portugal como instrumento divino de expansão da fé — ideia que orientou seus feitos marítimos e coloniais.
Durante a União Ibérica, esse espírito não foi anulado, mas assimilado: os engenheiros da Monarquia Hispânica, muitos deles portugueses ou formados em território lusitano, herdaram essa vocação cristocêntrica e guerreira, tornando-se protagonistas da construção da ordem católica ultramarina.
“Os engenheiros ibéricos eram, mais que funcionários, instrumentos conscientes da ordenação divina do mundo.” (FERNÁNDEZ-ARMESTO; LUCENA GIRALDO, 2018, p. 51)
7. A Companhia de Jesus como modelo de engenharia espiritual e técnica
Não se pode entender a fusão entre técnica e missão sem considerar o papel da Companhia de Jesus, fundada em 1540. Os jesuítas atuaram como engenheiros espirituais, mas também como educadores, arquitetos, cartógrafos e cientistas.
No Brasil, nomes como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta uniam ação missionária com ação civilizadora e urbanística. Nos colégios jesuítas, ensinava-se latim, retórica, lógica, mas também matemática e cosmografia — ou seja, a formação de engenheiros do Reino de Deus e do rei terreno.
Segundo Frei António Vieira, o império português era o cumprimento da profecia de Isaías: um império universal da fé, não pela força bruta, mas pelo zelo dos que educam, constroem e ordenam. A técnica, nesse contexto, não é neutra: é liturgia material da fé encarnada.
8. Considerações finais
A recuperação do arquétipo do engenheiro católico como figura de lealdade e expansão da ordem espiritual propõe um antídoto ao império da técnica desvinculada da verdade. Em tempos de dissolução simbólica e exílio espiritual, o reencontro com esse modelo pode inspirar uma nova forma de entender a missão intelectual, política e moral da Cristandade no século XXI. A fronteira, como lugar de combate e obediência, volta a ser o que foi em Ourique: um altar de consagração à verdade que salva.
Referências
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un imperio de ingenieros: Una historia del saber al servicio de la Monarquía. Barcelona: Taurus, 2018.
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
TURNER, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt and Company, 1920.
VIEIRA, António. Sermões. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
NÓBREGA, Manuel da. Cartas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931.
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