Entre os muitos legados esquecidos da cultura tupi, talvez nenhum seja tão profundamente humano quanto sua maneira de compreender a ausência. Para o mundo moderno, a saudade frequentemente é tratada como um sentimento de perda ou um buraco que se abre com a separação de alguém querido. Já na cosmovisão tupi, a saudade está longe de ser um vazio — ela é presença. Uma presença transformada.
Ver com o pensamento: o olhar da saudade
No Tupi antigo, quando alguém sente falta de outro, não se expressa simplesmente a ideia de que a pessoa “não está mais aqui”, mas sim que ela foi vista — com o pensamento, no sonho, no coração. A ausência física não implica inexistência. Ao contrário, aquele que partiu continua presente na forma de lembrança viva, evocada pela memória e pela imaginação.
A mente tupi não separa com rigidez o mundo material do mundo espiritual. Ver com o pensamento é ver de verdade. Aquele de quem se sente falta, seja por estar em uma terra distante ou por ter partido para a terra sem males (yvy marã e’ỹ), ainda está presente. Só mudou de forma.
A “terra sem males” não é um fim
A yvy marã e’ỹ, traduzida como “terra sem males”, é mais que um paraíso utópico ou uma ideia de céu no sentido cristão. Ela representa um lugar onde não há dor, onde a alma encontra repouso e plenitude. Ir para a terra sem males não é desaparecer: é alcançar outro estado de existência.
Quem parte para lá continua fazendo parte da comunidade dos vivos por meio da memória, da saudade e do sonho. O vínculo permanece. A morte, nesse contexto, não é ruptura, mas transição.
Saudade: um elo entre mundos
Na língua tupi, não há um termo único que corresponda exatamente à palavra “saudade” como entendemos em português. No entanto, o sentimento está lá — disperso em expressões, gestos, cânticos e sonhos. Palavras como "ma’ỹ" (faltar) e expressões como “ver alguém com o pensamento” revelam que sentir saudade é manter viva uma ligação.
Essa forma de ver o mundo nos desafia a repensar a ausência. A saudade, na tradição tupi, não é um abismo entre dois mundos, mas uma ponte. Ela sustenta a convivência mesmo quando os corpos já não estão lado a lado. O espírito do outro, em quem se pensa e por quem se ora, permanece entre os vivos como força, como orientação, como presença invisível.
Conclusão: mais do que sentimento, um princípio de realidade
Para os povos tupis, a imaginação não é apenas uma capacidade psicológica, mas uma dimensão do real. Aquilo que é visto com o pensamento tem existência. A saudade, por isso, não é frustração. É fidelidade. É memória que honra. É forma de presença.
Enquanto o Ocidente se debate com o peso da ausência, os tupis sabiam ver na saudade a persistência do vínculo — e, portanto, a vitória da comunhão sobre a separação. Quem ama, continua vendo. Quem sonha, continua encontrando. Quem sente saudade, continua habitando junto — ainda que em outra forma.
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