1. Introdução — trabalhar é continuar a travessia do verbo
Depois de compreender o homem como ponte (Szondi), e Cristo como Ponte Ontológica (Marinho e Pascoaes), resta reconhecer o desdobramento ético desse mistério: o trabalho é a continuidade da Encarnação no tempo.
Deus, ao criar o mundo, fez da ação o reflexo do seu ser: “Meu Pai trabalha sempre, e Eu também trabalho” (Jo 5,17). O homem, criado à sua imagem, participa desse labor divino. Trabalhar, portanto, não é apenas meio de subsistência, mas ato ontológico de mediação — é construir pontes entre o ideal e o real, entre o que é e o que deve ser.
Toda obra humana — quando justa, bela e verdadeira — prolonga o gesto criador do Verbo.
Assim como Cristo reconcilia o céu e a terra pela cruz, o homem reconcilia matéria e espírito pelo trabalho. Essa é a ética do operário divino: servir à verdade no concreto, fazer do tempo um altar.
2. José Marinho e o trabalho como reconciliação do ser e da verdade
Em Teoria do Ser e da Verdade, José Marinho afirma que o pensamento humano é o “lugar da reconciliação”. Mas podemos ampliar: o trabalho é a forma prática dessa reconciliação. Toda vez que o homem age criativamente — seja plantando, escrevendo, curando ou administrando — ele revela a verdade do ser, isto é, faz aparecer na matéria algo do seu fundamento espiritual.
“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser.” — José Marinho
O operário, o artesão, o cientista ou o poeta participam da mesma economia espiritual: todos buscam dar forma ao invisível. O trabalho, nesse sentido, é ontologia em ato. É nele que o ser se torna visível e a verdade, tangível.
Quando o trabalho é desprovido de amor, torna-se alienação; quando é movido por amor, torna-se liturgia. O altar do homem moderno é a sua mesa de trabalho — ali ele pode, ou não, reconciliar o mundo com o seu Criador.
3. Teixeira de Pascoaes e a arte de trabalhar com alma
Teixeira de Pascoaes, ao falar da Arte de Ser Português, reconhece na alma criadora o centro da nacionalidade.
A arte, para ele, é o trabalho elevado à dignidade espiritual — é a “labuta divina” que transforma a saudade em beleza.
“A arte é a mais pura oração do homem à eternidade.” — Teixeira de Pascoaes
Nesse sentido, o verdadeiro artista — e, por extensão, todo trabalhador que age com espírito criador — é um sacerdote do ser. Ele consagra o mundo à luz, faz da matéria uma oferenda. O trabalho, iluminado pela saudade, torna-se mística do fazer: o homem trabalha não só para viver, mas para revelar o que ama.
O português, na visão pascoalina, é chamado a “trabalhar poeticamente” — a imprimir nas coisas a marca da alma. Essa é a essência da sua missão civilizadora: unir ação e contemplação, técnica e fé, corpo e espírito.
4. Szondi e a ética do destino como vocação ao trabalho
Leopold Szondi mostrou que cada homem traz consigo impulsos herdados — vocações, tendências, dons e tentações — que formam o seu “inconsciente familiar”. Mas o homem se realiza quando escolhe o que fazer com esse legado.
O trabalho, então, é o meio pelo qual o homem redime a herança. Aquilo que herdamos — nossa biologia, nossa história, nosso temperamento — só se torna liberdade quando é posto a serviço. É pelo trabalho que o destino se converte em missão.
“O trabalho é a escolha pela qual o destino se transforma em liberdade.” — Leopold Szondi
A “ética do destino” é, em última instância, uma teologia da vocação. Cada profissão, cada tarefa, cada ofício é um chamado à unificação — o homem deve trabalhar de modo a reconciliar em si o herdado e o criado, o passado e o futuro, o natural e o sobrenatural.
Assim, Szondi antecipa o que Cristo realiza plenamente: assumir a carne — a herança da humanidade — e transformá-la em instrumento da redenção.
5. Cristo operário: o Verbo que trabalha
Cristo é o paradigma do trabalho redentor. antes de pregar, Ele foi carpinteiro; antes de ensinar, Ele construiu com as mãos. o madeiro que sustentou as Suas obras é o mesmo que sustentou a Cruz — a madeira do trabalho tornou-se a madeira da salvação.
“Com o suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gn 3,19)
— e em Cristo, o suor tornou-se sangue de redenção.
Na Encarnação, Deus assume não apenas a natureza humana, mas também a condição laboral do homem.
Trabalhar, portanto, é participar do mistério da Encarnação: é divinizar a ação humana. O trabalho é o sacramento do tempo, onde a eternidade se esconde sob a forma do esforço.
Cristo não anula o trabalho — Ele o transfigura. Por isso, todo trabalhador justo é tipo do Cristo carpinteiro: constrói pontes de madeira e de espírito, unindo o mundo ao seu princípio.
6. A economia como teologia da criação
Na perspectiva cristã e portuguesa, a economia — oikos nomos, a “lei da casa” — é também uma lei do ser. A ordem econômica verdadeira deve refletir a harmonia do cosmos: equilíbrio, justiça e amor. A usura, a exploração e o lucro sem sentido são formas de cisão — rompem a ponte entre o trabalho e o ser.
A economia espiritual, por outro lado, é ecologia da verdade: tudo o que é criado deve servir ao bem comum, devolver ao Criador o dom recebido.
Assim, a ética do trabalho não se mede apenas por produtividade, mas por fecundidade espiritual:
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um livro escrito com amor vale mais que mil palavras vazias;
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um pão partilhado tem mais peso ontológico que um ouro acumulado;
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um ato de serviço silencioso aproxima mais de Deus do que mil discursos de fé.
A economia cristã é, portanto, economia de pontes — ela liga dons e necessidades, trabalho e graça, tempo e eternidade.
7. A santificação através do trabalho — a ponte do quotidiano
Santificar-se é tornar-se transparente ao ser. Cada homem é chamado a transformar o seu ofício em altar, o seu talento em dom, o seu esforço em oração.
Essa é a espiritualidade do labor, fundamento de toda verdadeira civilização. O santo e o trabalhador coincidem quando o trabalho é feito ad maiorem Dei gloriam — para maior glória de Deus. E o homem torna-se, então, o que Szondi, Marinho e Pascoaes anunciaram: uma ponte viva onde o eterno passa pelo tempo e o tempo ascende ao eterno.
8. Conclusão — o trabalho como extensão da encarnação
O homem, imagem do Cristo-Ponte, é chamado a prolongar a obra divina pela ação. Cada ato criador é um tijolo nessa ponte que liga a terra ao céu.
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Em Pascoaes, trabalhar é criar com saudade — transformar ausência em presença.
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Em Marinho, trabalhar é reconciliar ser e verdade — tornar o invisível visível.
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Em Szondi, trabalhar é transfigurar o destino — fazer da herança uma vocação.
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Em Cristo, trabalhar é amar até o fim — fazer da cruz a maior das obras.
O trabalho, quando unido a Cristo, deixa de ser castigo e torna-se missão redentora. É por ele que o homem, no cotidiano, participa da economia trinitária do amor.
E assim se cumpre o destino espiritual da humanidade: ser ponte entre o ser e o devir, entre o Criador e a Criação, entre o Tempo e a Eternidade.
“Tudo o que fizerdes, fazei-o de coração, como para o Senhor.” (Cl 3,23)
Trabalhar é, enfim, adorar com as mãos.
Bibliografia essencial
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José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
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Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.
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Leopold Szondi. Schicksalsanalyse. Basel: Benno Schwabe, 1944.
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São João Paulo II. Laborem Exercens. Vaticano, 1981.
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Joseph Ratzinger. Introdução ao Cristianismo. Lisboa: Paulinas, 1971.
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Hans Urs von Balthasar. Glória: Uma Estética Teológica. Lisboa: Paulus, 1990.
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Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 3, a. 8 – “O trabalho como cooperação na providência divina.”
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