1. Introdução — O Espírito Santo como mediador da História
Toda crise social é, no fundo, uma crise espiritual. As lutas entre capital e trabalho, entre patrões e operários, entre progresso e tradição, não são apenas conflitos econômicos, mas sintomas de uma cisão ontológica: o rompimento entre o ser e a verdade, entre o espírito e a matéria.
A filosofia portuguesa — de Teixeira de Pascoaes a José Marinho — nasce precisamente como resposta a essa cisão. Ela não é mera especulação sobre o ser, mas um projeto de reconciliação: unir o visível e o invisível, o pensamento e a vida, a alma e o mundo.
Quando São Josemaria Escrivá fala de santificação através trabalho, ele dá a essa ontologia uma aplicação concreta: o homem reconcilia o tempo com a eternidade ao transformar o trabalho em oração. E quando Leão XIII publica Rerum Novarum (1891), ele faz dessa reconciliação o programa social da Igreja: a concórdia entre as classes é o reflexo, na ordem econômica, da união entre o ser e a verdade na ordem ontológica.
2. José Marinho: reconciliar o ser e a verdade
Para José Marinho, o drama humano começa na cisão — a ruptura entre o ser e a verdade. O homem conhece o ser apenas fragmentariamente, e por isso vive em desordem. Mas o pensamento, quando se abre à transcendência, torna-se lugar de reconciliação: o ser-da-verdade e a verdade-do-ser voltam a coincidir.
“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser.” — José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade
No plano social, essa cisão manifesta-se como conflito entre capital e trabalho — duas faces de uma mesma substância humana, agora separadas pela ganância e pela alienação. O capital (fruto do trabalho acumulado) e o trabalho (ato atual de criação) são, como o ser e a verdade, complementares e inseparáveis. Divididos, produzem miséria e injustiça; reconciliados, tornam-se fecundos.
Portanto, a ontologia da reconciliação de Marinho fornece a base metafísica da Rerum Novarum:
reconciliar o que o pecado dividiu, harmonizar a criação com o Criador.
3. Teixeira de Pascoaes: o trabalho como arte e oração
Em A Arte de Ser Português, Teixeira de Pascoaes vê na saudade a força que une o homem a Deus. Ela é, em termos sociais, o princípio de uma economia espiritual: a alma que sente saudade trabalha não apenas por lucro, mas por amor; ela transforma o fazer em arte, o esforço em oferenda.
“O trabalho é a oração em movimento.” — Pascoaes, manuscritos da Renascença Portuguesa
Pascoaes antecipa o que Escrivá sistematizará: o homem se santifica fazendo bem o que deve fazer, por amor. A saudade é o vínculo entre o finito e o infinito — e o trabalho é o meio pelo qual essa ligação se torna visível.
Em termos sociais, isso significa que a arte e a economia se reconciliam. O trabalho manual, intelectual ou espiritual, quando realizado com amor e perfeição, deixa de ser meio de opressão e torna-se comunhão.
É aqui que a filosofia portuguesa encontra a doutrina social da Igreja: o homem é chamado a trabalhar com alma, não apenas com técnica.
4. São Josemaria Escrivá: a santificação pelo trabalho como praxis da reconciliação
São Josemaria Escrivá (1902–1975) retoma, em chave espiritual, o mesmo princípio ontológico:
se Cristo, o Verbo Encarnado, santificou a matéria ao assumir um corpo humano, então toda ação humana pode ser lugar de graça.
“Santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, e santificar os outros com o trabalho.” — Escrivá, Caminho, n.º 825
Essa tríplice fórmula resume o movimento da reconciliação:
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Santificar o trabalho — unir o ser e a verdade: fazer o que se faz com perfeição e sentido de serviço.
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Santificar-se no trabalho — reconciliar corpo e alma, tempo e eternidade.
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Santificar os outros com o trabalho — reconciliar a sociedade, criar comunhão entre as classes.
Escrivá transforma em praxis espiritual o que Marinho descreveu metafisicamente e Pascoaes poeticamente. O trabalho torna-se o sacramento do ser — a ponte viva entre o homem e Deus, entre o capital e o trabalho, entre a terra e o céu.
5. “Rerum Novarum”: a ontologia da concórdia social
A encíclica Rerum Novarum de Leão XIII foi escrita num contexto de conflito social. Mas, mais do que política, ela propõe uma filosofia da concórdia: o capital e o trabalho devem cooperar, porque ambos são expressões de uma mesma dignidade humana.
“Entre os deveres do patrão e do operário, há vínculos sagrados de justiça e caridade.” — Leão XIII, Rerum Novarum, §19
Ora, isso é exatamente o que a filosofia portuguesa compreende como ontologia da reconciliação: assim como o ser e a verdade não podem ser separados sem que o mundo se desintegre, também o capital e o trabalho não podem ser separados sem que a sociedade adoeça.
A Rerum Novarum não é apenas um manifesto econômico, mas uma teologia da comunhão social. Ela reconhece no trabalho humano a extensão da criação divina — e, portanto, o lugar onde a graça deve penetrar a economia.
6. Portugal e o destino espiritual da reconciliação
Na alma portuguesa — moldada pela saudade, pela missão e pela arte — há uma vocação natural para a reconciliação dos contrários. Por isso, a filosofia portuguesa, unida à espiritualidade do Opus Dei e à doutrina social da Igreja, representa uma forma de economia cristã integral: um modo de viver a fé na história, sem dualismos, sem materialismo, sem ódio de classes.
O “Império do Espírito Santo”, de que falavam os místicos lusos, é precisamente isso: uma sociedade reconciliada, onde cada homem trabalha com amor, cada capital serve ao bem comum e cada vocação floresce em comunhão. O português, como dizia Pascoaes, é “ponte entre o finito e o infinito” — e o seu trabalho é a expressão dessa ponte.
Assim, a “arte de ser português” é, em sentido pleno, a arte de aplicar a Rerum Novarum:
transformar a economia em oração, a técnica em serviço, e o progresso em santidade.
7. Conclusão — A economia da graça
A santificação através do trabalho, em Escrivá; a reconciliação do ser e da verdade, em Marinho; a saudade criadora, em Pascoaes; e a concórdia social, em Leão XIII — são faces de uma mesma verdade: a economia da graça.
O trabalho é o altar do mundo moderno. Nele, o homem se reconcilia com Deus e com o próximo.
A luta de classes cede lugar à colaboração; a competição dá espaço à comunhão; e a matéria, quando tocada pela graça, torna-se sacramento.
“Tudo o que é verdadeiramente humano é caminho para Deus.” — São Josemaria Escrivá
A filosofia portuguesa, ao compreender o ser como reconciliação, oferece o fundamento metafísico da doutrina social da Igreja: a paz entre capital e trabalho só é possível quando ambos reconhecem que o verdadeiro patrão é Deus e o verdadeiro lucro é o amor.
Em Cristo, o Verbo Operário, o mundo reencontra sua unidade: a teologia torna-se economia, o trabalho torna-se oração, e o homem torna-se ponte entre o tempo e a eternidade.
Bibliografia essencial
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Leão XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.
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São Josemaria Escrivá. Caminho; Sulco; Forja. Madrid: Rialp, 1950–1977.
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José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
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Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.
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António Braz Teixeira. Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.
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Pio XI. Quadragesimo Anno. Vaticano, 1931.
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São João Paulo II. Laborem Exercens. Vaticano, 1981.
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