1. Introdução — da ponte humana à Ponte divina
Toda filosofia que leva a sério a ideia do homem como pontifex culmina necessariamente na figura de Cristo, o Pontifex Maximus. Ele é o arco perfeito que liga o Ser ao Nada, o Infinito ao Finito, a Verdade à Existência. Em Cristo, a ponte deixa de ser apenas metáfora — torna-se realidade ontológica.
A filosofia portuguesa — sobretudo em Teixeira de Pascoaes e José Marinho — pressente essa verdade e a expressa sob forma poética e metafísica: o homem como ponte é imagem de Cristo, o mediador absoluto. Mesmo Szondi, em sua psicologia do destino, reconhece essa dimensão redentora da liberdade humana, quando afirma que o homem só se realiza reconciliando em si o herdado e o escolhido — exatamente o que Cristo realiza em plenitude.
A Encarnação é, portanto, o eixo em torno do qual essas três visões convergem: a saudade de Pascoaes, a ontologia de Marinho e a ética de Szondi encontram em Cristo o seu cumprimento total.
2. Cristo como o Ser da Verdade
José Marinho fala do Ser e da Verdade como dois polos cuja unidade foi rompida pela cisão. No homem, essa cisão é consciência de finitude; em Cristo, ela é superada, porque o Ser e a Verdade coincidem plenamente.
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)
Cristo é, ontologicamente, o ponto de interseção entre o Ser absoluto (Deus) e o ser finito (homem). Nele, o Ser da Verdade é o próprio Verbo, e a Verdade do Ser é a sua Encarnação. Tudo o que Marinho descreve como tarefa filosófica — a reconciliação entre ser e verdade — acontece em Cristo como fato ontológico.
Assim, podemos dizer:
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O que em Marinho é “visão unívoca”, em Cristo é visão beatífica.
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O que em Marinho é “cisão”, em Cristo é kenosis, o esvaziamento voluntário que abre caminho para a unidade.
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O que em Marinho é “insubstancial substante”, em Cristo é o Logos encarnado, o Espírito que se faz carne sem perder sua substancialidade divina.
Cristo, portanto, não apenas pensa o Ser — Ele é o Ser que pensa e se doa; não apenas revela a Verdade — Ele é a Verdade que se encarna.
3. Cristo como saudade encarnada
Em A Arte de Ser Português, Pascoaes descreve a saudade como o elo entre o homem e Deus — o desejo que une o finito ao infinito. Mas a saudade, em sua estrutura mais íntima, é o eco da Encarnação: o coração humano sente falta de Deus porque foi criado para Ele.
“A Saudade é o laço divino que une o ser à sua origem.” — Teixeira de Pascoaes
Cristo é a própria Saudade feita carne. Ele não apenas simboliza o desejo de união — Ele realiza a união desejada. Se a alma portuguesa sofre de saudade, é porque intui o drama do Verbo: o Espírito que desce ao mundo para reunir o que estava disperso.
Na cruz, a saudade atinge o seu clímax: o grito “Eli, Eli, lama sabactani” é o eco do homem que, por amor, assume a distância de Deus para vencê-la. A ressurreição é a conversão dessa saudade em presença — a transformação do desejo em posse amorosa.
Em Cristo, portanto, a saudade deixa de ser apenas sentimento — torna-se ontologia redimida: o movimento da alma que retorna à sua fonte.
4. Cristo como ética do destino
Para Szondi, o homem é livre na medida em que aceita e transfigura o seu destino. A liberdade não consiste em negar a herança, mas em assumir e santificar o que se recebeu. A Encarnação é a suprema expressão dessa ética: o Verbo assume a carne herdada da humanidade e, ao assumi-la, redime-a.
“O Verbo se fez carne, e habitou entre nós.” (Jo 1,14)
Cristo não rejeita o destino humano; Ele o transforma em caminho de redenção. O que em Szondi é “ética do destino”, em Cristo é salvação ontológica: a carne, antes instrumento da morte, torna-se sacramento da vida eterna.
Assim, o homem, criado à imagem do Filho, é chamado também a essa obra: transformar o que herdou (biologia, história, cultura, dor) em oferenda livre e amorosa. A vocação é o prolongamento da Encarnação no tempo — a ponte viva pela qual Deus continua a atravessar o mundo.
5. Cristo como ponte ontológica universal
A teologia cristã sempre chamou Cristo de Mediador. Mas, à luz de Pascoaes, Marinho e Szondi, podemos compreender essa mediação não apenas moral ou religiosa, mas ontológica.
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Cristo é a ponte metafísica: une Ser e Verdade, restaurando a unidade que o pensamento filosófico busca.
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Cristo é a ponte afetiva: cumpre o movimento da Saudade, trazendo Deus de volta ao coração do homem.
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Cristo é a ponte ética: assume o Destino e o transfigura, mostrando que o sofrimento pode ser caminho de luz.
A Cruz é o ponto de encontro dessas três dimensões — o eixo vertical (Deus-homem) e o horizontal (homem-mundo) que se cruzam no coração do Salvador. A cruz é, literalmente, a arquitetura da ponte divina: une o céu e a terra em duas vigas que se sustentam pelo amor.
6. Cristo e a vocação portuguesa — servir, reconciliar, alargar
A missão espiritual de Portugal, como intuiu Pascoaes, é uma extensão dessa ponte divina. O impulso missionário português — ir “por mares nunca dantes navegados” — é símbolo da vocação universal do espírito humano de alargar o ser e levar a luz onde há escuridão.
José Marinho diria: trata-se do ser da verdade em ato. Pascoaes diria: é a saudade de Deus a expandir-se pelo mundo. Szondi diria: é o destino herdado que se transforma em liberdade criadora.
Mas todos, à sua maneira, reconhecem o mesmo arquétipo: o homem chamado a imitar o Cristo-Ponte, a unir o que o mundo separa — fé e razão, espírito e matéria, indivíduo e comunidade, tempo e eternidade.
7. Conclusão — O logos como arquitetura do ser
No princípio era o Verbo — e o Verbo é, em si, uma ponte: Ele liga o Pai à criação. Toda a história humana é o prolongamento dessa travessia: Deus que passa pelo homem para salvar o homem. Por isso, toda filosofia autêntica, toda arte verdadeira e toda ética justa são pontes — ecos do mesmo Logos que se fez carne.
O homem é construtor de pontes porque participa da obra do Verbo; ele é saudade porque traz em si a lembrança do Paraíso; ele é ser e verdade porque foi criado à imagem de Cristo.
Em Cristo, tudo se reúne: a saudade encontra o seu termo, a cisão encontra a unidade e o destino humano encontra o seu sentido.
Assim, a ontologia portuguesa e a psicologia do destino convergem na mais alta teologia: a ponte ontológica é o próprio Cristo e o homem, seu aprendiz de arquiteto, constrói no tempo o que Deus sonhou na eternidade.
Bibliografia complementar
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Santo Atanásio. De Incarnatione Verbi Dei.
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Joseph Ratzinger (Bento XVI). Introdução ao Cristianismo.
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Hans Urs von Balthasar. Glória: uma Estética Teológica.
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Leopold Szondi. Schicksalsanalyse.
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Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português.
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José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade.
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