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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O Homem como construtor de pontes: de Szondi a Pascoaes e José Marinho — uma ontologia da reconciliação

1. Introdução — A vocação do homem é unir o que foi separado

Toda a filosofia que parte de um verdadeiro sentimento de transcendência reconhece no homem um ser de passagem, um pontifex, isto é, um construtor de pontes. Entre o abismo do tempo e a eternidade, entre a matéria e o espírito, entre o inconsciente e a liberdade, o homem é aquele que reconcilia os mundos cindidos pela queda.

Essa imagem — o homem-ponte — atravessa a psicologia de Leopold Szondi, a metafísica de José Marinho e a poética de Teixeira de Pascoaes. Em todos, o ser humano é chamado a transformar a cisão em comunhão, a fazer de sua vida o lugar onde o Ser, a Verdade e o Amor se reencontram.

O ponto culminante dessa tradição é cristológico: Cristo é o construtor supremo de pontes, o Pontifex Maximus, que reconcilia o homem com Deus e manifesta, na carne, a unidade perdida. A filosofia portuguesa, ao lado da análise do destino de Szondi, participa desse mesmo espírito de reconciliação, traduzindo em diferentes linguagens o mistério da Encarnação.

2. Szondi e o homem como ponte entre a hereditariedade e a liberdade

Leopold Szondi, em sua Schicksalsanalyse (Análise do Destino), vê o homem como resultado de uma tensão dinâmica entre dois polos: o hereditário e o livre. Cada indivíduo traz consigo um conjunto de disposições herdadas — pulsões, tendências, vocações latentes — que formam o seu “inconsciente familiar”. Mas é pela decisão ética (Schicksalsethik) que o homem se eleva, escolhendo conscientemente o rumo da sua vida.

“O homem é construtor de pontes entre os abismos do seu próprio ser.” — Szondi, 1944

Essa ponte é interior e espiritual: ela liga o que o homem recebeu (o passado genético e psíquico) ao que ele cria (o futuro da liberdade). A análise do destino não é, portanto, determinista, mas profundamente teleológica — orientada por uma vocação. O homem realiza-se ao transformar a herança em missão, o peso da biologia em sentido espiritual.

Aqui, Szondi se aproxima da tradição portuguesa: a liberdade é sempre reconciliação, não negação. A ponte é o símbolo da unidade reencontrada, não da fuga.

3. José Marinho e o ser como ponte entre verdade e existência

Na Teoria do Ser e da Verdade (1961), José Marinho formula o equivalente ontológico do drama que Szondi descreve no plano psicológico. O ser humano vive entre o Ser e a Verdade, mas essa relação é marcada por uma cisão — a separação do espírito em relação ao fundamento.

O filósofo português vê o pensamento como o lugar da reconciliação entre Ser e Verdade. O “ser da verdade” e a “verdade do ser” não são dois conceitos distintos, mas dois momentos de um mesmo movimento de unificação.

“O Ser é da Verdade e a Verdade é do Ser: e é no espírito humano que ambos se reencontram.” — José Marinho

Assim como em Szondi, o homem é o espaço da ponte, o mediador entre os polos. Ele está entre o visível e o invisível, entre o que é e o que deve ser, entre a finitude e o absoluto. A liberdade humana é a expressão dessa ontologia da reconciliação: não é mera escolha, mas participação no movimento do Ser que se revela.

A “visão unívoca” de Marinho — ver sem dualidade, perceber o ser e a verdade como um só — é o culminar dessa travessia interior. O homem torna-se, por ela, o lugar de manifestação do fundamento, o ponto onde o infinito se dá a conhecer no finito.

4. Teixeira de Pascoaes e a saudade como ponte entre o finito e o infinito

Em A Arte de Ser Português (1915), Teixeira de Pascoaes transforma essa ontologia em emoção criadora.
A “saudade”, para ele, é o nome português do movimento que une o homem a Deus. Ela é a nostalgia do infinito que habita o coração do finito.

“A Saudade é a alma do mundo feita carne no coração do homem português.” — Teixeira de Pascoaes

A saudade não é passividade, mas energia criadora, uma forma de conhecimento afetivo que faz o homem participar do mistério divino. Por ela, o ser humano se torna artista — e ser artista é tornar-se ponte viva entre o mundo sensível e o divino.

Ser português, em Pascoaes, é ser-ponte: viver o destino de unir o Céu e a Terra através da arte, da fé e do sacrifício. A “arte de ser português” é a espiritualização da pátria, o esforço de elevar o temporal à dignidade do eterno.

Assim, a saudade cumpre no plano poético o que Marinho chama de “verdade do ser” e Szondi de “ética do destino”: ela reconcilia o homem com a sua origem e o conduz à plenitude do seu ser.

5. A ponte e o Pontífice — Cristo como unidade das três visões

O ponto de convergência de Szondi, Pascoaes e Marinho é Cristo. Em cada um deles, a figura do homem-ponte remete, consciente ou inconscientemente, à figura do Verbo Encarnado, que é a Ponte suprema entre Deus e o homem.

Em Cristo, o que Szondi chama “hereditariedade e liberdade” se unem: Ele assume a carne herdada e a redime pela vontade perfeita do Pai. Em Cristo, o que Marinho chama “ser e verdade” coincide: Ele é o Ser mesmo que se revela como Verdade viva. Em Cristo, o que Pascoaes chama “saudade” encontra o seu termo: o desejo infinito do homem é satisfeito pela presença de Deus feito homem.

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós.” (Jo 1,14)
Eis a ponte que une eternidade e tempo, espírito e corpo, céu e terra.

O homem é, portanto, construtor de pontes porque foi criado à imagem do Pontífice divino. Toda vocação humana — científica, artística, filosófica ou espiritual — é uma variação dessa obra de reconciliação: reunir o que foi separado, restaurar o sentido, devolver o mundo à sua unidade perdida.

6. Conclusão — A ontologia da reconciliação

A filosofia portuguesa, ao lado da psicologia do destino de Szondi, compõe uma verdadeira Ontologia da Reconciliação. Nela, o homem não é mero espectador do mundo, mas participante da criação. Ele é o elo entre o invisível e o visível, o lugar onde Deus se reflete no tempo.

Em Pascoaes, a ponte é a saudade. Em Marinho, a ponte é o ser da verdade. Em Szondi, a ponte é a decisão ética que transforma a herança em vocação. Em todos, o homem é chamado a construir, dentro de si e ao redor de si, a unidade que o próprio Cristo realizou no plano divino.

A verdadeira arte de ser — portuguesa, cristã, ou simplesmente humana — consiste em tornar-se ponte:
viver de tal modo que cada ato, cada pensamento e cada obra conduzam o mundo de volta à sua origem.

Bibliografia essencial

  • Leopold Szondi. Schicksalsanalyse. Basel: Benno Schwabe, 1944.

  • Leopold Szondi. Introduction to Fate Analysis. New York: Grune & Stratton, 1959.

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Leonardo Coimbra. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.

  • António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

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