1. Introdução – A filosofia como pátria do Espírito
Toda filosofia nacional verdadeiramente viva nasce do esforço de o homem reencontrar a sua unidade perdida. Portugal, ao longo da sua história espiritual, expressou essa busca através de dois movimentos complementares: o saudosismo de Teixeira de Pascoaes e a metafísica do ser de José Marinho. Em Pascoaes, “ser português” é uma arte espiritual, uma forma de saudade criadora que transforma a identidade nacional em vocação cósmica. Em Marinho, o “ser” é revelação da “verdade”, e o homem encontra o seu destino ao participar do movimento em que o Ser se manifesta e se reconcilia.
Ambos, cada qual à sua maneira, propõem uma ontologia viva, fundada na interioridade e na transcendência — uma filosofia que não é mera especulação, mas “missão do espírito”, expressão de uma alma que busca o Todo em si mesma.
2. Teixeira de Pascoaes: a arte como Transfiguração do ser nacional
Em A Arte de Ser Português (1915), Teixeira de Pascoaes define o ser português como um ato artístico e espiritual. Ser português não é um fato biológico nem um acidente histórico; é uma obra de arte interior, onde o homem se eleva acima da matéria e se faz expressão de Deus através da saudade.
“A saudade é a alma do mundo feita carne no coração do homem português.”
Para Pascoaes, a saudade não é mera nostalgia, mas uma força ontogênica, um princípio de unidade entre o finito e o infinito. Ela é o sentimento pelo qual o ser humano participa do eterno sem deixar o tempo.
Desse modo, o ser português é um modo particular de viver a tensão metafísica entre o ser e o nada — não pela razão, mas pela emoção espiritual.
O ideal pascoalino é o de transfigurar o real pela imaginação e pela fé, como Cristo transfigurou a matéria pela Encarnação. A “arte de ser” é, portanto, uma forma de ontologia poética, onde a criação artística e a criação divina coincidem em um mesmo movimento de amor e revelação.
3. José Marinho: o ser como verdade interior
Na Teoria do Ser e da Verdade (1961), José Marinho retoma o drama ontológico em linguagem filosófica rigorosa. O seu ponto de partida é a cisão: a ruptura entre o ser e a verdade, entre o homem e o fundamento. O filósofo português não busca eliminar a cisão pela lógica, mas transfigurá-la em visão unívoca, onde o ser e a verdade voltam a coincidir.
“O Ser é da Verdade, e a Verdade é do Ser: o pensamento é o lugar onde ambos se reconhecem.”
O núcleo de sua metafísica está no conceito de “insubstancial substante” — o ser que subsiste sem forma material, o espírito que é fundamento de si mesmo e de todas as coisas. Assim como em Pascoaes a saudade é o elo entre o homem e Deus, em Marinho o ser é o lugar da reconciliação, onde o espírito reencontra sua origem.
O movimento do ser é o mesmo da saudade: um desejo de totalidade, um esforço do espírito para recompor a unidade perdida. A verdade não é adequação racional, mas participação ontológica. Saber é ser — e ser é unir-se à verdade.
4. A ponte ontológica: da saudade ao ser
A filosofia de Marinho é o prolongamento metafísico da poética de Pascoaes. O que em Pascoaes aparece como emoção criadora, em Marinho torna-se estrutura ontológica. Ambos descrevem o mesmo itinerário do espírito português:
| Etapa | Teixeira de Pascoaes | José Marinho |
|---|---|---|
| Origem | O homem nasce da saudade — desejo do Todo. | O ser surge da cisão — separação do fundamento. |
| Caminho | A arte de ser português é esforço de retorno a Deus pela criação. | A filosofia é esforço de unificação entre ser e verdade. |
| Meta | A alma portuguesa cumpre sua missão quando faz do efémero um reflexo do eterno. | O espírito atinge a visão unívoca quando o ser se revela como verdade. |
Portanto, a saudade pascoalina é o momento sensível do mesmo movimento espiritual que, em Marinho, se torna momento ontológico. Ambos entendem o homem como ponte entre dois mundos: o mundo do tempo e o da eternidade, o da carne e o do espírito. A arte e a filosofia são modos diferentes de expressar a mesma vocação: reconciliar o homem com o Ser.
5. A Missão de Portugal: Ser-da-Verdade
O que Pascoaes chama “arte de ser português” é, em termos marinhianos, o exercício do ser-da-verdade.
Portugal, na visão pascoalina, é uma nação cuja vocação não é dominar, mas revelar — tornar o invisível visível, encarnar o espiritual no mundo. Marinho eleva esse destino à categoria ontológica: o homem português, quando vive segundo o espírito, torna-se testemunho da verdade, “insubstancial substante” em ação, expressão de um fundamento divino que se dá através da história.
“Ser português é, no fundo, uma forma de ser-da-verdade: viver da saudade como abertura ao Ser.”
Assim, o mito nacional e a metafísica se encontram: o “mito de Ourique” e o “ser-da-verdade” são dois modos de uma mesma luz — a luz que conduz do particular ao universal, do histórico ao eterno.
6. Conclusão – A filosofia como arte e a arte como filosofia
Entre Teixeira de Pascoaes e José Marinho há uma continuidade profunda: ambos transformam a filosofia portuguesa num ato espiritual de reconciliação. A Arte de Ser Português é a Teoria do Ser expressa em linguagem poética; a Teoria do Ser e da Verdade é a Arte de Ser Português expressa em linguagem metafísica.
Em Pascoaes, o homem realiza a unidade através da arte e da emoção. Em Marinho, ele a realiza pela contemplação e pela verdade. Mas ambos convergem na certeza de que “ser” é participar de um Todo divino, que se revela tanto na beleza da criação quanto na busca da verdade.
Deste modo, o pensamento português revela-se como uma filosofia de encarnação: o ser é amor em ato, e a saudade é a sua forma sensível. A vocação de Portugal — e de cada homem que se reconhece nessa tradição — é a de viver a verdade do ser e o ser da verdade, pela arte, pela fé e pela contemplação.
Bibliografia essencial
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Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.
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José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
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Coimbra, Leonardo. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.
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Paiva, António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.
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Cruz, António. A Ontologia Portuguesa: de Pascoaes a Marinho. Porto: Faculdade de Letras, 1998.
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