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domingo, 2 de novembro de 2025

O Homem de Seis Milhões de Dólares e o mito da fronteira: da biônica ao capitalismo de alto desempenho

 

“Quando o extraordinário se torna ordinário, a fronteira deixa de ser expansão do espírito e torna-se apenas expansão do consumo.”

Nos anos 1970, a televisão americana produziu uma de suas metáforas mais poderosas: O Homem de Seis Milhões de Dólares (The Six Million Dollar Man). O astronauta Steve Austin, reconstruído com tecnologia biônica após um acidente, representava a fusão entre o corpo humano e o poder científico. Mas por trás dessa narrativa de ficção científica, esconde-se algo mais profundo: a atualização de um imaginário histórico americano — o mito da fronteira.

A fronteira como promessa e o corpo como território

O mito da fronteira, formulado por Frederick Jackson Turner em 1893, dizia que a identidade americana se formava na superação de seus limites — geográficos, técnicos e morais.
A cada nova descoberta, a civilização americana parecia renascer. A série dos anos 1970 transfere essa lógica para o corpo: o corpo humano torna-se a nova fronteira

Se no século XIX a fronteira era o Oeste selvagem, no século XX ela passa a ser a carne que se deixa colonizar pela máquina. O homem biônico é, portanto, o novo pioneiro — o frontiersman da era tecnológica. Ele avança onde o homem comum não pode, e por isso é herói. Mas quando a cultura de massa absorve esse espanto, quando o extraordinário é repetido, transformado em brinquedo, propaganda e clichê televisivo, o espanto perde sua força criadora. O extraordinário se torna ordinário.

Do espanto ao hábito: a inflação do imaginário

Quando o espanto é rebaixado à rotina, o imaginário da fronteira se corrompe. O que antes era superação espiritual e conquista do desconhecido, torna-se apenas inflação simbólica: tudo precisa ser mais caro, mais rápido, mais novo, mas nada é realmente novo.

É por isso que, na modernidade, o “homem de seis milhões de dólares” deu lugar ao jogador mediano de seis milhões de dólares. A fronteira tecnológica tornou-se uma mercadoria — e o corpo, um investimento, a ponto de gerar um culto ao corpo no sentido materialista do terimo.

Essa inflação do imaginário traduz-se também na vida cotidiana: o consumo não é mais movido pelo amor ao belo ou ao verdadeiro, mas por uma concupiscência de novidade, uma gula de Chronos, o tempo devorador a ponto de querer ser o primeiro a cada segundo. A cada nova fronteira superada — seja no esporte, na tecnologia ou na biotecnologia — a experiência do espanto é imediatamente absorvida pelo mercado, que se torna cada mais impessoal, tais como são as coisas do Estado.

Chronos e Kairos: o tempo perdido da fronteira

Na visão clássica, havia dois tempos:

  • Chronos, o tempo que devora, o tempo da sequência, da produtividade e do cálculo.

  • Kairos, o tempo oportuno, qualitativo, em que o homem se encontra com o sentido do seu agir.

A modernidade, ao negar Kairos, transformou toda descoberta em produto. O sentido da fronteira — que deveria ser crescimento interior, alargamento da alma — foi reduzido a expansão quantitativa.

 Assim, o homem moderno conquista o espaço, mas perde o eixo. Avança nas galáxias, mas não no espírito. Refaz o corpo, mas esquece de reconstruir o coração.

O novo homem biônico e a negação do espanto

Hoje, os atletas e celebridades são os herdeiros do mito da fronteira: superam recordes, ultrapassam limites humanos, medem seu valor em milhões. Mas diferentemente do herói de Turner, que via na fronteira uma prova de caráter, o homem moderno vê nela apenas um espelho do próprio desejo inflacionado.

O corpo biônico contemporâneo — repleto de sensores, algoritmos e métricas de desempenho — é o retrato de uma civilização que perdeu a medida entre meio e fim. O homem que queria dominar a natureza acabou por transformar a si mesmo em objeto de consumo.

Epílogo: o retorno do espanto

Talvez a verdadeira fronteira de nosso tempo não seja mais tecnológica, mas espiritual. A fronteira que resta é aquela que separa o Chronos do Kairos — o tempo que devora do tempo que salva. 

Enquanto não recuperarmos o espanto diante do extraordinário, permaneceremos reconstruindo corpos, mas não reconstruindo almas.E assim, o homem de seis milhões de dólares continuará sendo o homem de uma cultura falida — rica em meios, pobre em fins.

Nota final: Turner, Royce e a fronteira da lealdade

A leitura de The Frontier in American History, de Frederick Jackson Turner, revela que o avanço da fronteira não era apenas um processo econômico ou geográfico, mas um ato moral e espiritual. Cada movimento rumo ao desconhecido implicava uma recriação do caráter nacional — uma metanoia coletiva.
Mas essa força regeneradora só podia existir enquanto a fronteira guardava o mistério do Kairos, o tempo do chamado interior.

Quando Turner escreve, o homem ainda pressente que a fronteira é lugar de provação e crescimento.
Quando O Homem de Seis Milhões de Dólares é filmado, a fronteira já se tornou laboratório e espetáculo.

Nesse ponto, a reflexão de Josiah Royce, em A Filosofia da Lealdade, torna-se decisiva. Para Royce, a lealdade autêntica é aquela que se dirige a uma causa criadora e comum, uma fidelidade que transcende o indivíduo e o liga ao Todo de Deus.
Sem essa lealdade superior, o progresso degenera em idolatria de si mesmo; a fronteira se transforma em deserto, e o homem — biônico ou não — em prisioneiro da própria técnica.

A fronteira, para voltar a ser promessa, precisa reencontrar a lealdade criadora.
E o homem, para ser novamente “reconstruído”, precisa reconhecer que nenhuma tecnologia o salvará enquanto não for movida pela caridade do espírito.

Epígrafe final

“Não é a força, nem a rapidez, nem a destreza que tornam o homem perfeito, mas a direção de sua vontade. E esta só se aperfeiçoa quando é leal ao Bem que a transcende.”
Leão XIII, paráfrase da Rerum Novarum combinada com o espírito de Josiah Royce

Bibliografia Comentada

Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt & Company, 1920.

Obra fundadora da tese do “mito da fronteira”. Turner defende que a expansão para o Oeste moldou o caráter americano — individualista, pragmático e inovador —, mas também espiritual, em sua crença no autodomínio e na renovação constante.

Royce, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

Royce propõe a lealdade como princípio moral supremo, capaz de unir o indivíduo a uma causa maior do que si mesmo. Sua noção de “lealdade criadora” inspira a crítica à modernidade técnica que perdeu o sentido do dever transcendente.

Leão XIII. Rerum Novarum (Encíclica, 1891).

O Papa define o trabalho como participação na criação divina, estabelecendo uma ponte entre justiça social e espiritualidade. Sua defesa da dignidade humana diante da mecanização do trabalho antecipa o debate sobre a desumanização tecnológica.

Ellul, Jacques. The Technological Society. New York: Knopf, 1964.

Um dos grandes diagnósticos do século XX sobre o poder autônomo da técnica. Ellul argumenta que a eficiência tornou-se fim em si mesma, substituindo os valores espirituais por uma lógica instrumental — tema essencial ao presente ensaio.

McLuhan, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw-Hill, 1964.

O homem biônico é o símbolo por excelência do conceito mcluhaniano: “o meio é a mensagem”. A fusão do corpo com a máquina representa a extensão extrema da condição humana pela tecnologia.

Guardini, Romano. Das Ende der Neuzeit (O Fim da Modernidade). Würzburg: Werkbund-Verlag, 1950.

Guardini vê a técnica moderna como perda do centro espiritual do homem. Seu pensamento reforça a ideia de que a fronteira tecnológica só pode ser redimida pelo reencontro com o Kairos, o tempo do espírito.

Pieper, Josef. Leisure: The Basis of Culture. New York: Pantheon Books, 1952.

Pieper distingue o tempo produtivo (Chronos) do tempo contemplativo (Kairos), defendendo o ócio como espaço de abertura ao transcendente. Sua filosofia ilumina a contraposição entre o tempo devorador da modernidade e o tempo da graça.

Sloan, Robin (org.). The Six Million Dollar Man: The Complete Series. Universal Television, 1973–1978.

A série televisiva, marco da cultura pop, é aqui reinterpretada como espelho de uma mentalidade que vê o corpo humano como território de experimentação técnica e símbolo da vitória da ciência sobre o mistério.

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