1. A fé no homem e o eclipse do sagrado
“A América é, antes de tudo, um experimento do homem consigo mesmo.”
— Josiah Royce, The Philosophy of Loyalty
A civilização americana nasceu da crença de que o homem pode refazer o mundo à sua própria imagem. O “novo mundo” foi concebido não como uma extensão da cristandade, mas como uma terra de promissão humana, onde a vontade substitui a graça e o trabalho substitui a oração.
Diferentemente de Portugal e do Brasil — civilizações cujo nascimento está ligado ao mito de Ourique, em que o poder temporal recebe sua legitimidade de um chamado divino —, a América ergueu-se sobre a ideia de autonomia absoluta. O homem americano é, desde as origens, o novo Adão, que renuncia à herança do pecado e confia no esforço próprio para instaurar o paraíso na Terra.
Essa imanência, que no início pareceu virtude, converteu-se em destino: uma cultura sem transcendência, movida pela crença no progresso infinito e no poder ilimitado da técnica. O que em Portugal foi milagre, na América tornou-se cálculo.
2. O mito da fronteira e a teologia do sucesso
“A fronteira é a linha móvel que separa a civilização do deserto.”
— Frederick Jackson Turner, The Frontier in American History
Frederick Jackson Turner percebeu que a fronteira — a expansão para o Oeste — não foi apenas um fato geográfico, mas uma experiência espiritual secularizada. O homem da fronteira, isolado de tradições e autoridades, tornou-se o arquétipo da autossuficiência.
A fronteira substituiu a cruz como símbolo da vocação. Cada nova conquista territorial equivalia a uma confirmação da “eleição” americana. Daí nasce o destino manifesto: a crença de que a nação americana é o novo Israel, encarregado de levar a luz da liberdade — não a luz da fé — ao mundo.
Essa crença gerou uma teologia do sucesso: o triunfo material é sinal de retidão moral, e a derrota é castigo pela ineficiência. O sagrado foi traduzido em produtividade, e a salvação em prosperidade. Assim, o protestantismo inicial da América transmutou-se, aos poucos, em um capitalismo redentor, cuja liturgia é o desempenho e cujo dogma é a expansão.
3. O colapso da imanência: o esgotamento espiritual
“O cansaço é o esgotamento da alma na ausência de um fim.”
— Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço
Toda civilização que absolutiza o homem esgota-se no vazio. Quando o horizonte material se esgota, o espírito começa a colapsar. A América vive esse processo: tendo conquistado todas as fronteiras externas — geográficas, tecnológicas, militares —, enfrenta agora a fronteira interior, onde o homem deve confrontar o próprio sentido da existência.
A sociedade americana é a realização extrema daquilo que Byung-Chul Han chama de sociedade do desempenho: um mundo em que o homem se explora a si mesmo em nome da liberdade, transformando-se em escravo de sua própria positividade. O resultado é o cansaço espiritual — não o da fadiga física, mas o da alma saturada de metas e carente de propósito.
Byung-Chul Han identifica esse cansaço como “a exaustão do possível”: tudo é permitido, tudo é acessível, mas nada é significativo. A fronteira perdeu sua função simbólica; a expansão se tornou repetição. Nesse contexto, Viktor Frankl reaparece como profeta: “O homem suporta tudo, menos a falta de sentido.”
O sofrimento deixou de redimir; passou a ser erro de desempenho. E, sem transcendência, o erro torna-se desespero.
4. O neopaganismo da performance
“Quando o sagrado é abolido, o espetáculo toma o seu lugar.”
— Christopher Lasch, A Cultura do Narcisismo
A sociedade americana não é mais cristã; é neopagã. Os antigos deuses do Olimpo foram substituídos por atletas, empresários, artistas e influenciadores digitais. O palco, o estádio e o escritório tornaram-se templos onde se celebra o culto do sucesso.
Essa metamorfose é visível: o corpo é deificado, a imagem é divinizada, e a moral é reduzida à visibilidade. O herói moderno já não vence o mal, mas o fracasso. O ideal de santidade foi trocado pelo ideal de performance.
Contudo, a ausência do sagrado gera o paradoxo da saturação: quanto mais se brilha, mais se obscurece o sentido. O homem que busca ser deus termina reduzido a produto. A cultura americana é, assim, a autoidolatria tecnificada do Ocidente. E o cansaço que a consome é o castigo invisível dessa idolatria.
5. O mito de Ourique e a possibilidade de sentido
“Cristo é Rei de Portugal.”
— Tradição do Milagre de Ourique, século XII
Em contraste com essa imanência fatigada, o mito de Ourique permanece como um modelo transcendente de civilização. Quando D. Afonso Henriques viu o Cristo e recebeu o sinal de Sua eleição, Portugal nasceu não de uma vontade de poder, mas de uma vocação espiritual. O reino português foi fundado sob uma promessa, não sob um contrato.
Nesse mito, a vitória humana é símbolo de uma eleição divina; o progresso, caminho de santificação; e o poder, serviço ao Todo de Deus. O Brasil herdou essa mesma estrutura simbólica — ainda que ofuscada pelas crises do tempo — e conserva em sua alma uma reserva espiritual capaz de oferecer ao mundo uma alternativa: o progresso com transcendência, a liberdade enraizada na graça.
Portugal e o Brasil têm o que falta à América: um mito de sentido. E é esse mito — o de Ourique — que pode inspirar um novo tipo de civilização, reconciliando o trabalho com o espírito, a técnica com a verdade e o homem com Deus.
6. Conclusão: o fim da fronteira e o retorno ao sagrado
“Quando o homem deixa de adorar a Deus, acaba por adorar qualquer coisa.”
— G. K. Chesterton, Orthodoxy
O mito da fronteira, outrora força criadora da América, tornou-se um ciclo de repetição sem alma. O homem moderno já não conquista terras, mas curtidas; já não busca a eternidade, mas relevância. A fronteira física tornou-se digital, e o deserto espiritual ampliou-se ao infinito.
O cansaço que se espalha pelo mundo ocidental é o sintoma final da imanência — o preço da recusa do sagrado. Nenhuma técnica poderá curar a ausência de transcendência, porque a técnica opera no plano do útil, e o sentido pertence ao plano do verdadeiro.
Enquanto o Ocidente tecnificado busca um novo mito, o mundo luso-brasileiro conserva, em sua origem, uma chave esquecida: a certeza de que a história humana só encontra repouso quando se curva diante do mistério.
O futuro da civilização dependerá de quem for capaz de reencontrar o centro — o centro que não passa, onde o homem se reencontra não como criador absoluto, mas como colaborador da Criação.
Bibliografia essencial
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Frederick Jackson Turner — The Frontier in American History
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Josiah Royce — The Philosophy of Loyalty
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Christopher Dawson — Religion and the Rise of Western Culture
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Byung-Chul Han — A Sociedade do Cansaço
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Viktor E. Frankl — Em Busca de Sentido
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Richard Weaver — Ideas Have Consequences
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Alasdair MacIntyre — After Virtue
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Olavo de Carvalho — O Jardim das Aflições
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José Marinho — A Filosofia Portuguesa
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António Quadros — A Ideia de Portugal na História e na Cultura
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G. K. Chesterton — Orthodoxy
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Romano Guardini — O Fim da Era Moderna
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Josef Pieper — O Ócio e a Vida Intelectual
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