Nos anos 1970, quando a televisão ainda era o grande laboratório do imaginário popular, surgiu uma série que marcou época: O Homem de Seis Milhões de Dólares (The Six Million Dollar Man). Protagonizada por Lee Majors, a trama contava a história de Steve Austin, um astronauta gravemente ferido em um acidente que é “reconstruído” com partes biônicas. “Podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia”, dizia a icônica introdução. O custo? Seis milhões de dólares — uma quantia quase inimaginável para a época.
O valor de um corpo em 1973
Quando a série estreou em 1973, seis milhões de dólares representavam algo próximo de quarenta milhões em valores atuais (2025), corrigidos pela inflação americana. Era um número que simbolizava não apenas o alto custo da tecnologia, mas também o sonho do progresso científico que dominava o imaginário pós-Apollo 11 e o auge da Guerra Fria. O homem biônico era o símbolo do poder tecnológico do Ocidente, uma metáfora da capacidade humana de superar suas limitações por meio da ciência.
O homem biônico e o homem atlético
Cinquenta anos depois, o “homem de seis milhões de dólares” não é mais um experimento secreto do governo americano — ele veste tênis da Nike, assina contratos com a Adidas e joga basquete profissional. Na NBA, o salário médio de um jogador gira em torno de US$ 6 a 10 milhões por temporada, e as grandes estrelas, como Stephen Curry, LeBron James e Giannis Antetokounmpo, ultrapassam facilmente a marca dos US$ 45 milhões anuais.
O que antes era o preço de uma reconstrução biônica hoje é o preço de um atleta regular, cuja “biônica” é produzida não em laboratórios secretos, mas em academias, centros de performance e programas de nutrição e análise de dados de última geração.
Do sonho tecnológico ao capitalismo de desempenho
O corpo biônico da década de 1970 simbolizava a esperança na ciência. Já o corpo atlético do século XXI é a expressão de um capitalismo do desempenho.
Cada músculo é treinado, mensurado e transformado em ativo. Cada ponto, rebote ou assistência gera valor de mercado. O atleta é uma máquina biotecnológica e financeira, cuja eficiência é quantificada por métricas, contratos e patrocínios.
Assim, o sonho da ficção se realizou — não em bases militares, mas nas quadras, nas arenas e nos centros de mídia global. O homem biônico tornou-se real, mas à custa de um sistema que transforma o corpo em investimento e a vitalidade em produto.
A ironia da cifra
Há uma ironia histórica aqui: o número que outrora representava o auge do progresso humano — seis milhões de dólares — hoje é apenas o salário de um jogador mediano.
O símbolo do extraordinário tornou-se comum. Isso diz muito sobre a inflação dos sonhos humanos: quanto mais a tecnologia e a economia crescem, mais caro se torna o próprio ideal de perfeição.
Em 1973, seis milhões bastavam para reconstruir um homem. Em 2025, mal bastam para pagar o substituto de um titular.
O novo homem biônico: sensores, dados e inteligência artificial
Hoje, a biônica não é mais uma metáfora — ela é rotina. Os atletas profissionais são monitorados por sensores que medem batimentos cardíacos, pressão muscular, velocidade e até padrões de sono. Cada treino é acompanhado por algoritmos de inteligência artificial que analisam desempenho em tempo real, prevendo lesões e otimizando movimentos.
Em esportes como o basquete, há câmeras instaladas em todos os ângulos das quadras, captando cada gesto técnico e transformando o corpo humano em um conjunto de coordenadas matemáticas. Treinadores e cientistas do esporte usam esses dados para “reconstruir” o atleta todos os dias — ajustando treinos, dietas e estratégias com a mesma precisão com que o governo americano, na ficção, reconstruía Steve Austin.
Assim, o homem biônico renasceu — não como ficção científica, mas como realidade estatística.
A fronteira entre o corpo e a máquina desapareceu. A promessa da série dos anos 1970 foi cumprida: “Podemos reconstruí-lo. Temos a tecnologia.” Mas a pergunta permanece — quem é dono desse corpo reconstruído?O próprio atleta, ou o sistema que mede, lucra e controla cada centímetro de sua força?
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