1. Introdução — A unidade interrompida e o retorno pelo Espírito
Tito Lívio Ferreira demonstrou que o Brasil não foi colônia, mas prolongamento do Reino — uma hipóstase histórica de Portugal no além-mar. A independência, portanto, não libertou, mas fragmentou: a ruptura foi ontológica, não apenas política. De um mesmo tronco espiritual nasceram duas nações que, separadas exteriormente, permaneceram unidas interiormente.
A missão histórica do Brasil, nesse contexto, é restaurar a unidade do ser português sob nova forma.
Essa restauração não ocorre por via diplomática nem econômica, mas por via espiritual: o reencontro entre o Verbo da fé portuguesa e a imaginação da alma tupi, entre o logos e o mythos, entre o conhecimento racional e o conhecimento por presença.
2. A herança portuguesa e o drama da cisão
A Arte de Ser Português de Pascoaes e a Teoria do Ser e da Verdade de Marinho deram ao ser lusitano uma identidade ontológica fundada na saudade e na reconciliação. Com a independência, esse ser foi separado da sua fonte: o Brasil herdou a forma, mas perdeu a substância espiritual. Nas palavras de Mário Ferreira do Santos, passamos a viver uma “crise do ser”, uma existência desconectada do fundamento.
A perda da continuidade com o ser português deixou o brasileiro suspenso entre o céu e a terra, condenado a improvisar soluções simbólicas para manter-se inteiro. E foi nesse vazio que emergiu o diálogo inconsciente com a cosmologia tupi: a imaginação indígena, sensível ao invisível, começou a preencher o espaço deixado pela ausência de Portugal.
3. A cosmologia tupi e a Imaginação como ponte
Na visão tupi, o mundo visível e o invisível se comunicam continuamente. Ver alguém “na imaginação” não é fantasia, mas modo de presença real — a alma, ao lembrar, torna presente o ausente. Essa experiência é estruturalmente idêntica à saudade portuguesa: ambas são formas de comunhão espiritual através da distância.
A saudade é o modo lusitano da presença espiritual;
a imaginação é o modo tupi da mesma presença.
Quando o Brasil se separa de Portugal, o povo brasileiro, instintivamente, transfere para o imaginário tupi o papel que antes cabia à teologia: a imaginação torna-se o meio de ver o que não se vê, de amar o que está ausente, de reconstituir o Ser pela lembrança viva. Assim, a cosmologia indígena não destrói a herança portuguesa — ela a guarda em outro registro.
4. Lavelle e o conhecimento por presença
Louis Lavelle chamou de conhecimento por presença a forma mais alta de saber: aquela em que o sujeito e o objeto coincidem na participação do Ser. Não se trata de “representar” o mundo, mas de presenciar o ser, de conhecê-lo no ato em que ele se dá.
“Conhecer é participar do ser; e o ser é presença que se dá.” — Lavelle, De l’Acte
Ora, tanto a saudade quanto a imaginação tupi são formas espontâneas desse conhecimento por presença. Na saudade, o ausente é presente pelo amor; na imaginação, o distante é real pela visão interior.
Ambas são gnosiologias participativas — e ambas apontam para o mesmo horizonte lavelliano: o ser como ato presente.
A ruptura com Portugal, paradoxalmente, obrigou o Brasil a reencontrar o ser pelo coração e pela imaginação, reabrindo o caminho do conhecimento por presença.
5. Olavo de Carvalho e a restauração da inteligência amorosa
Olavo de Carvalho, leitor e herdeiro espiritual de Lavelle, traduziu essa metafísica em termos culturais:
a verdadeira inteligência não é analítica, mas presencial; conhece porque ama, e ama porque participa do ser.
Para ele, a decadência moderna — inclusive a brasileira — é resultado da substituição do conhecimento por presença pelo conhecimento por representação. O Estado totalitário, que pretende mediar tudo, é o símbolo político dessa alienação: nada pode existir fora dele, porque o ser foi substituído por imagens mortas.
Ao recuperar o pensamento de Lavelle, Olavo reconduz o Brasil ao seu eixo português: ele restabelece a ponte entre o ser e o conhecer, entre fé e razão, entre saudade e imaginação. O conhecimento por presença é, em última análise, a filosofia da saudade elevada à consciência plena.
6. O Brasil como síntese ontognosiológica
O que emerge dessa confluência é o retrato espiritual do Brasil como síntese viva de duas metafísicas:
| Herança Portuguesa | Herança Tupi |
|---|---|
| Saudade (ver o ausente no amor) | Imaginação (ver o ausente na visão interior) |
| Ontologia da reconciliação (Marinho) | Cosmologia da interpenetração (Tupã, Anhangá, floresta viva) |
| Conhecimento contemplativo | Conhecimento participativo |
| Fé e Verbo | Alma e Natureza |
A fusão dessas duas sabedorias gera uma ontognosiologia brasileira: o conhecimento como presença amorosa no mundo, a imaginação como extensão da fé. O brasileiro conhece o real não por abstração, mas por convivência; não por teoria, mas por co-presença.
Assim, o Brasil realiza o retorno do ser português em outro plano: o novo Portugal é interior, pneumático, imaginativo — o Portugal do Espírito.
7. O novo Portugal — a restauração do ser pela presença
O Brasil, ao incorporar a imaginação tupi e o amor português, realiza o milagre da restituição:
o ser que se havia cindido reencontra-se na presença. O novo Portugal não é político, mas ontológico:
é o mesmo Verbo de Ourique, agora encarnado na mestiçagem, na alegria e na fé do trabalho cotidiano.
A Arte de Ser Brasileiro é, portanto, a Arte de Ser Português restaurada no Espírito: uma arte de conhecer por amor, de ver pela imaginação e de trabalhar pela presença. A santificação através do trabalho, o conhecimento por presença e a saudade-imaginação são três expressões de um mesmo mistério:
a participação do homem no Ser divino que se dá continuamente.
8. Conclusão — a comunhão das duas almas
O Brasil é, enfim, o novo corpo da alma portuguesa, e a alma tupi é o seu sangue imaginativo. O Espírito Santo, ao soprar sobre o Atlântico, uniu essas duas naturezas numa só vocação:
reconciliar o ser pela presença amorosa.
O que em Portugal era saudade tornou-se, no Brasil, imaginação viva; o que era contemplação, tornou-se ação; o que era conhecimento, tornou-se convivência.
Assim, a crise do ser, descrita por Mário Ferreira, encontra o seu antídoto: a reconciliação do ser pela presença — a restauração do logos português pela imaginação tupi — a realização histórica do conhecimento por presença de Lavelle — e a confirmação profética do ensino de Olavo de Carvalho:
“Conhecer é tornar-se presente ao ser, e deixar que o ser se faça presente em nós.”
Bibliografia essencial
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Tito Lívio Ferreira. O Brasil não foi colônia. São Paulo: Nacional, 1968.
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Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.
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José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.
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Mário Ferreira do Santos. Filosofia da Crise. São Paulo: Matese, 1963.
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Louis Lavelle. De l’Acte. Paris: Aubier, 1937.
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Olavo de Carvalho. O Imbecil Coletivo e O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995–2000.
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São Josemaria Escrivá. Caminho. Madrid: Rialp.
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