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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A iImaginação como ponte: ver o Cristo no outro e a herança espiritual da liberdade

1. Introdução — a imaginação como órgão da comunhão

Ver o outro na imaginação é mais do que lembrar: é participar do seu ser. Quando o espírito contempla o outro com amor e verdade, vê nele a presença de Cristo — o logos que anima toda pessoa e dá unidade à história. A imaginação, nesse sentido, não é fantasia, mas órgão da comunhão: ela permite ver o invisível, ligar o passado ao presente e continuar a obra dos que nos antecederam.

O homem que imagina o outro com caridade torna-se co-operador de Deus na economia da salvação.
O olhar que vê Cristo em cada pessoa é já um ato de redenção, porque transforma o tempo em eternidade: torna o ausente presente e o presente significativo.

2. A imaginação cristã e o olhar de Cristo

Ver o outro “no Cristo” é adotar o olhar do próprio Cristo: um olhar que não julga, mas salva; que não mede, mas reconhece. É o olhar do Verbo que, ao ver o homem, viu o Pai; e ao ver o Pai, amou o homem.

“Tudo o que fizestes a um destes meus pequeninos, a mim o fizestes.” (Mt 25,40)

Esse versículo é a chave da imaginação cristã: ao imaginar o outro, não o vemos apenas como Cristo, mas em Cristo. A imaginação torna-se, então, sacramento da presença — um modo de encarnar espiritualmente o amor.

No pensamento português — de Pascoaes a Marinho — essa visão é o núcleo do ser. A “saudade” é justamente o ato de ver o ausente como presente; a “visão unívoca” é ver o ser e a verdade em unidade.
Ambas se cumprem quando o homem vê Cristo no outro.

3. Herança, anticrese e substituição no amor

Você menciona dois modos de assumir o lugar do outro: herança e anticrese.
Ambos revelam dimensões distintas da ponte espiritual:

  • Herança: receber o que o outro deixou — dons, obras, tradições, exemplos — e multiplicar esses talentos nos méritos de Cristo. É a continuidade natural da vida na graça: “Outros lavraram, e vós entrais nos seus trabalhos” (Jo 4,38).

  • Anticrese: assumir a dívida do outro — o peso, o erro, o sofrimento — e redimi-lo pelo sacrifício e pelo amor. É o prolongamento do mistério da cruz: tomar sobre si o que estava por sanar, não por vaidade, mas por solidariedade redentora.

Em ambos os casos, o que se exige é a substituição no amor — o movimento kenótico de pôr-se no lugar do outro não para imitá-lo mecanicamente, mas para compreender-lhe o sentido e honrar sua intenção diante de Deus. Assim, a herança torna-se criação, e a anticrese, redenção.

4. O olhar do antepassado: a imaginação como comunhão dos santos

Quando vemos o outro na imaginação, especialmente os falecidos, entramos na comunhão dos santos.
A tradição cristã nunca separou radicalmente os vivos e os mortos: ambos compõem a mesma Ecclesia — a Igreja triunfante e a militante unidas num só corpo.

Ver o falecido com amor é permitir que ele continue a agir em nós. A sua memória se transforma em inspiração operante: ele dirige nosso trabalho não por possessão, mas por comunhão.
O morto não desaparece: torna-se arquiteto invisível das nossas pontes.

Essa é a origem verdadeira da tradição: não repetição, mas continuidade viva. A tradição é o “agir dos mortos nos vivos”, ou melhor, “o agir de Cristo através dos séculos naqueles que O amaram”. E quando essa comunhão é interiorizada, ela gera cultura: a forma visível da fidelidade.

5. A imaginação como fundamento da liberdade

A modernidade acreditou que a liberdade nascia da vontade; mas a verdade é que a liberdade nasce da imaginação iluminada pela verdade. Porque só é livre quem sabe ver. E ver, no sentido cristão, é reconhecer o Cristo no outro e em si.

A imaginação é o lugar onde o ser humano se reconcilia com o tempo. Ela liga o que foi ao que será, permitindo que o passado redimido se torne impulso para o futuro. Sem imaginação, não há memória viva nem criação autêntica — há apenas repetição mecânica. Mas com imaginação verdadeira, o homem é capaz de ressuscitar as intenções santas de seus antepassados e levá-las à plenitude.

“A verdade vos libertará.” (Jo 8,32)
A imaginação, quando orientada pela verdade, torna-se fundamento da liberdade.

Ver o outro em Cristo é libertar-se do ego e das cadeias da inveja e do medo;
é entrar na economia do dom, onde tudo o que é herdado se torna vocação.

6. O homem como ponte imaginativa

Chegamos, assim, à culminância da filosofia das pontes: a ponte mais profunda é a imaginação inspirada pelo amor. Ela liga o visível e o invisível, o eu e o outro, o passado e o futuro, o humano e o divino.

O homem imaginativo — no sentido pascoalino e cristão — é o que vive no “entre”: entre o já e o ainda-não, entre o mundo e o Reino, entre o que herdou e o que deve criar. Ele é o continuador do Cristo-Ponte, edificando com pensamentos, gestos e obras o caminho da reconciliação universal.

7. Conclusão — Ver é servir

Ver o outro na imaginação é o primeiro ato do serviço cristão. Porque ver é compreender, e compreender é amar. Quem vê Cristo no outro não usurpa o seu lugar, mas o assume nos méritos de Cristo — continua o que ele começou, completa o que ele não pôde concluir.

Essa imaginação redentora é o segredo das civilizações que constroem pontes e não muros. Ela gera tradição porque é memória viva; gera cultura porque é amor operante; gera liberdade porque é visão da verdade.

E assim, ao ver o outro no Cristo, nós nos tornamos aquilo que Deus sonhou desde o princípio:
trabalhadores da eternidade no tempo, construtores da ponte invisível que une todos os seres na caridade.

“Já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim.” (Gl 2,20)

Epílogo

A imaginação cristã é o templo onde se encontram os vivos e os mortos, o trabalho e a graça, o homem e Deus.É nela que nasce a tradição verdadeira — não a que repete, mas a que ressuscita. E por isso, ver o outro na imaginação é um ato de fé e de fidelidade: é continuar a ponte que o amor começou,
para que, nos méritos de Cristo, a verdade continue sendo o fundamento da liberdade.

Bibliografia

Fontes Filosóficas e Poéticas

  • Teixeira de Pascoaes. A Arte de Ser Português. Lisboa: Renascença Portuguesa, 1915.

  • José Marinho. Teoria do Ser e da Verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

  • Leonardo Coimbra. A Razão Animada. Porto: Renascença Portuguesa, 1912.

  • Leopold Szondi. Schicksalsanalyse. Basel: Benno Schwabe, 1944.

  • António Braz Teixeira. A Filosofia Portuguesa Contemporânea. Lisboa: INCM, 1983.

  • Miguel Spinelli. “A Ontologia de José Marinho.” Revista Portuguesa de Filosofia, 1985.

  • Vergílio Ferreira. Invocação ao Meu Corpo. Lisboa: Bertrand, 1969.

Fontes Teológicas

  • Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q.3, a.8 (“O trabalho como cooperação na providência”).

  • Santo Agostinho. Confissões.

  • São João Paulo II. Laborem Exercens. Vaticano, 1981.

  • Hans Urs von Balthasar. Glória: Uma Estética Teológica. Lisboa: Paulus, 1990.

  • Joseph Ratzinger (Bento XVI). Introdução ao Cristianismo. Lisboa: Paulinas, 1971.

  • Karl Rahner. Ouvinte da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1967.

  • Jean Daniélou. O Mistério do Tempo. São Paulo: Loyola, 1971.

Fontes Bíblicas

  • Evangelho segundo João, 1:14; 4:38; 5:17; 14:6.

  • Evangelho segundo Mateus, 10:8; 22:32; 25:34–40.

  • Carta aos Gálatas, 2:20.

  • Carta aos Colossenses, 3:23.

  • Primeiro Livro das Crônicas, 29:14.

Fontes Complementares

  • Edith Stein. Ser Finito e Ser Eterno. Madrid: Encuentro, 2002.

  • Paul Ricoeur. A Memória, a História, o Esquecimento. Lisboa: Edições 70, 2000.

  • Emmanuel Levinas. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.

  • Gabriel Marcel. Ser e Ter. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.

  • Pierre Hadot. O Que é a Filosofia Antiga? Lisboa: Edições 70, 1995.

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