1. Introdução — a imaginação como órgão da comunhão
Ver o outro na imaginação é mais do que lembrar: é participar do seu ser. Quando o espírito contempla o outro com amor e verdade, vê nele a presença de Cristo — o logos que anima toda pessoa e dá unidade à história. A imaginação, nesse sentido, não é fantasia, mas órgão da comunhão: ela permite ver o invisível, ligar o passado ao presente e continuar a obra dos que nos antecederam.
O homem que imagina o outro com caridade torna-se co-operador de Deus na economia da salvação.
O olhar que vê Cristo em cada pessoa é já um ato de redenção, porque transforma o tempo em eternidade: torna o ausente presente e o presente significativo.
2. A imaginação cristã e o olhar de Cristo
Ver o outro “no Cristo” é adotar o olhar do próprio Cristo: um olhar que não julga, mas salva; que não mede, mas reconhece. É o olhar do Verbo que, ao ver o homem, viu o Pai; e ao ver o Pai, amou o homem.
“Tudo o que fizestes a um destes meus pequeninos, a mim o fizestes.” (Mt 25,40)
Esse versículo é a chave da imaginação cristã: ao imaginar o outro, não o vemos apenas como Cristo, mas em Cristo. A imaginação torna-se, então, sacramento da presença — um modo de encarnar espiritualmente o amor.
No pensamento português — de Pascoaes a Marinho — essa visão é o núcleo do ser. A “saudade” é justamente o ato de ver o ausente como presente; a “visão unívoca” é ver o ser e a verdade em unidade.
Ambas se cumprem quando o homem vê Cristo no outro.
3. Herança, anticrese e substituição no amor
Você menciona dois modos de assumir o lugar do outro: herança e anticrese.
Ambos revelam dimensões distintas da ponte espiritual:
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Herança: receber o que o outro deixou — dons, obras, tradições, exemplos — e multiplicar esses talentos nos méritos de Cristo. É a continuidade natural da vida na graça: “Outros lavraram, e vós entrais nos seus trabalhos” (Jo 4,38).
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Anticrese: assumir a dívida do outro — o peso, o erro, o sofrimento — e redimi-lo pelo sacrifício e pelo amor. É o prolongamento do mistério da cruz: tomar sobre si o que estava por sanar, não por vaidade, mas por solidariedade redentora.
Em ambos os casos, o que se exige é a substituição no amor — o movimento kenótico de pôr-se no lugar do outro não para imitá-lo mecanicamente, mas para compreender-lhe o sentido e honrar sua intenção diante de Deus. Assim, a herança torna-se criação, e a anticrese, redenção.
4. O olhar do antepassado: a imaginação como comunhão dos santos
Quando vemos o outro na imaginação, especialmente os falecidos, entramos na comunhão dos santos.
A tradição cristã nunca separou radicalmente os vivos e os mortos: ambos compõem a mesma Ecclesia — a Igreja triunfante e a militante unidas num só corpo.
Ver o falecido com amor é permitir que ele continue a agir em nós. A sua memória se transforma em inspiração operante: ele dirige nosso trabalho não por possessão, mas por comunhão.
O morto não desaparece: torna-se arquiteto invisível das nossas pontes.
Essa é a origem verdadeira da tradição: não repetição, mas continuidade viva. A tradição é o “agir dos mortos nos vivos”, ou melhor, “o agir de Cristo através dos séculos naqueles que O amaram”. E quando essa comunhão é interiorizada, ela gera cultura: a forma visível da fidelidade.
5. A imaginação como fundamento da liberdade
A modernidade acreditou que a liberdade nascia da vontade; mas a verdade é que a liberdade nasce da imaginação iluminada pela verdade. Porque só é livre quem sabe ver. E ver, no sentido cristão, é reconhecer o Cristo no outro e em si.
A imaginação é o lugar onde o ser humano se reconcilia com o tempo. Ela liga o que foi ao que será, permitindo que o passado redimido se torne impulso para o futuro. Sem imaginação, não há memória viva nem criação autêntica — há apenas repetição mecânica. Mas com imaginação verdadeira, o homem é capaz de ressuscitar as intenções santas de seus antepassados e levá-las à plenitude.
“A verdade vos libertará.” (Jo 8,32)
A imaginação, quando orientada pela verdade, torna-se fundamento da liberdade.
Ver o outro em Cristo é libertar-se do ego e das cadeias da inveja e do medo;
é entrar na economia do dom, onde tudo o que é herdado se torna vocação.
6. O homem como ponte imaginativa
Chegamos, assim, à culminância da filosofia das pontes: a ponte mais profunda é a imaginação inspirada pelo amor. Ela liga o visível e o invisível, o eu e o outro, o passado e o futuro, o humano e o divino.
O homem imaginativo — no sentido pascoalino e cristão — é o que vive no “entre”: entre o já e o ainda-não, entre o mundo e o Reino, entre o que herdou e o que deve criar. Ele é o continuador do Cristo-Ponte, edificando com pensamentos, gestos e obras o caminho da reconciliação universal.
7. Conclusão — Ver é servir
Ver o outro na imaginação é o primeiro ato do serviço cristão. Porque ver é compreender, e compreender é amar. Quem vê Cristo no outro não usurpa o seu lugar, mas o assume nos méritos de Cristo — continua o que ele começou, completa o que ele não pôde concluir.
Essa imaginação redentora é o segredo das civilizações que constroem pontes e não muros. Ela gera tradição porque é memória viva; gera cultura porque é amor operante; gera liberdade porque é visão da verdade.
E assim, ao ver o outro no Cristo, nós nos tornamos aquilo que Deus sonhou desde o princípio:
trabalhadores da eternidade no tempo, construtores da ponte invisível que une todos os seres na caridade.
“Já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim.” (Gl 2,20)
Epílogo
A imaginação cristã é o templo onde se encontram os vivos e os mortos, o trabalho e a graça, o homem e Deus.É nela que nasce a tradição verdadeira — não a que repete, mas a que ressuscita. E por isso, ver o outro na imaginação é um ato de fé e de fidelidade: é continuar a ponte que o amor começou,
para que, nos méritos de Cristo, a verdade continue sendo o fundamento da liberdade.
Bibliografia
Fontes Filosóficas e Poéticas
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Fontes Complementares
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Gabriel Marcel. Ser e Ter. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.
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Pierre Hadot. O Que é a Filosofia Antiga? Lisboa: Edições 70, 1995.
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