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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A apatridia como falha constitucional de governo e suas repercussões econômicas

1. Introdução

A apatridia, também conhecida pelo termo alemão heimatlos, constitui um dos fenômenos mais graves de exclusão jurídica da pessoa humana. Ela representa, em essência, a ausência de nacionalidade reconhecida por qualquer Estado soberano, resultando do conflito negativo entre sistemas legais de atribuição de nacionalidade.

Em um mundo organizado sob a forma de Estados, onde a nacionalidade é o vínculo jurídico e político que torna o indivíduo sujeito de direitos e deveres perante uma ordem jurídica, a apatridia traduz-se em uma anomalia do sistema jurídico internacional — uma falha de governo, na medida em que o indivíduo é privado de seu direito mais elementar: o direito a ter direitos.

2. Fundamentos jurídicos da apatridia: o conflito entre jus soli e jus sanguinis

Historicamente, os Estados modernos adotaram dois critérios principais para a atribuição de nacionalidade:

  • Jus soli (direito do solo): o nascimento no território do Estado é o fato gerador da nacionalidade.
    Exemplo: Estados Unidos, Canadá, Brasil (com exceções constitucionais).

  • Jus sanguinis (direito de sangue): a nacionalidade é herdada dos pais, independentemente do local de nascimento.
    Exemplo: Alemanha, Polônia, Itália, Japão.

O conflito negativo de nacionalidade surge quando os sistemas jurídicos de dois Estados se chocam, criando uma lacuna.

Imagine o caso de uma criança nascida em um país que adota o jus sanguinis, mas cujos pais pertencem a um Estado que adota o jus soli. O país de nascimento não concede nacionalidade por falta de ascendência; o país de origem dos pais não concede nacionalidade por falta de territorialidade. O resultado é um indivíduo que não pertence a nenhum Estado — um apátrida de nascimento.

Essa falha estrutural é agravada por situações de guerra, dissolução estatal (como o colapso da Iugoslávia ou da URSS), discriminação étnica, perseguição política ou revogação arbitrária de cidadania. Em todos esses casos, o Estado abdica de sua função de garantir personalidade jurídica a seus cidadãos, rompendo o pacto civilizatório que sustenta o constitucionalismo moderno.

3. A apatridia como falha constitucional e afronta à dignidade humana

Do ponto de vista do direito constitucional contemporâneo, a apatridia representa uma violação direta de princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito:

  1. Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal brasileira): o indivíduo apátrida é colocado à margem da ordem jurídica, sendo-lhe negado o reconhecimento da personalidade civil e política.

  2. Princípio da igualdade: sem nacionalidade, o apátrida é juridicamente desigual, pois não pode votar, ser votado, possuir bens com segurança jurídica ou participar da vida pública.

  3. Direito fundamental à nacionalidade (art. 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948): “Todo homem tem direito a uma nacionalidade. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la.”

A ausência de nacionalidade revela, portanto, uma falha no dever do Estado de conferir proteção jurídica universal à pessoa humana. Tal falha, quando generalizada, transforma-se em instrumento de exclusão e perseguição, como ocorreu nas Leis de Nuremberg (1935), que tornaram os judeus heimatlos antes mesmo de deportá-los — um exemplo extremo da apatridia usada como arma de desumanização estatal.

4. Repercussões econômicas e sociais da apatridia

O impacto econômico da apatridia é profundo e multifacetado:

  • Desaproveitamento do capital humano: o apátrida, sem documentos válidos, não pode exercer profissões formais, abrir contas bancárias, registrar propriedades ou participar da economia regular.

  • Informalidade forçada: cria-se um contingente invisível de trabalhadores à margem das estatísticas, sem contribuição previdenciária, sem acesso ao sistema financeiro e sem poder de consumo estruturado.

  • Custos públicos e internacionais: os países de acolhimento enfrentam despesas com assistência humanitária, processos de refúgio e regularização documental.

  • Perda de confiança jurídica: a insegurança quanto ao estatuto das pessoas repercute nos investimentos, no comércio e nas relações diplomáticas, pois o Estado que não protege o próprio cidadão revela debilidade institucional.

Economicamente, a apatridia manifesta uma crise de governança: o Estado deixa de ser capaz de garantir os vínculos básicos que sustentam a economia moderna — propriedade, contrato, trabalho e circulação de pessoas. 

Em última instância, o apátrida é invisível para o mercado porque não é reconhecido como sujeito pleno de direitos civis.

5. O tratamento jurídico internacional da apatridia

Diante dessa realidade, a comunidade internacional procurou criar instrumentos de mitigação:

  • Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954) — define o status legal e os direitos fundamentais dos apátridas.

  • Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (1961) — impõe aos Estados a obrigação de evitar a criação de novos casos, concedendo nacionalidade àqueles que, de outro modo, ficariam sem pátria.

  • Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, art. 20) — reafirma o direito de toda pessoa a uma nacionalidade.

  • Decreto nº 8.501/2015 (Brasil) — internalizou dispositivos da Convenção de 1954, permitindo inclusive a naturalização facilitada para apátridas.

Essas normas internacionais revelam um consenso moral e jurídico: a nacionalidade é um direito humano fundamental, e a apatridia, uma anomalia que deve ser corrigida com prioridade.

6. Considerações filosóficas: o “direito a ter direitos”

Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, foi quem melhor expressou o drama da apatridia: “Os apátridas são os novos párias da humanidade — perderam o direito a ter direitos”. A filósofa mostra que a nacionalidade não é apenas um vínculo jurídico, mas a condição de possibilidade para que os direitos humanos sejam concretos.

 Sem Estado, o indivíduo não é “homem” perante o Direito. A apatridia, portanto, é o ponto de ruptura entre o ser humano natural e o sujeito político-jurídico, denunciando o fracasso do Estado em garantir o mínimo ético de pertença à comunidade política.

7. Conclusão

A apatridia é, simultaneamente, um problema jurídico, um fracasso constitucional e um desastre econômico e civilizacional. Ela surge de lacunas legislativas, de choques entre soberanias e, muitas vezes, de arbitrariedades políticas. Do ponto de vista do Direito Constitucional, é uma falha de governo, porque nega a própria razão de ser do Estado: assegurar personalidade e dignidade à pessoa humana. Do ponto de vista econômico, gera exclusão, informalidade e desperdício de potencial humano.

Em suma, onde há apátridas, há um déficit de civilização. Superar a apatridia é reafirmar que a soberania do Estado não pode jamais suprimir a soberania da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, dotada de um destino político e espiritual que não pode ser anulado por fronteiras ou omissões burocráticas.

Bibliografia

  • ARÊNDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

  • DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: Parte Geral. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

  • REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2017.

  • PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2021.

  • ONU. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954).

  • ONU. Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (1961).

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

  • BRASIL. Decreto nº 8.501/2015 (internaliza a Convenção de 1954).

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