1. Introdução
Se a apatridia jurídica priva o homem de um vínculo formal com o Estado, a apatridia econômica o priva de um vínculo material com a comunidade política. Em outras palavras, o apátrida jurídico não tem pátria no Direito; o apátrida econômico não tem pátria na realidade social. Ambos são sintomas da mesma falha constitucional: o Estado, criado para proteger a pessoa humana, passa a existir como estrutura autônoma, indiferente à sorte de seus cidadãos.
Assim como o heimatlos é excluído da lei, o apátrida econômico é excluído do sistema produtivo — e, portanto, despossuído da capacidade de agir no mundo. Trata-se de uma nova forma de desterro: não a expulsão do território, mas a expulsão da economia.
2. O conceito de apatridia econômica
A expressão apatridia econômica pode ser definida como a condição de desfiliação econômica estrutural, na qual o indivíduo, embora formalmente cidadão, não dispõe dos meios materiais mínimos para exercer seus direitos fundamentais — trabalho, propriedade, consumo, poupança, previdência e mobilidade social.
Ela surge quando:
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o trabalho não gera renda suficiente para assegurar autonomia pessoal;
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o acesso ao crédito, à educação e à propriedade é restringido por castas burocráticas ou financeiras;
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o sistema tributário retira mais do que restitui;
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a economia é capturada por uma elite rentista, divorciada da função social da riqueza.
Nessas condições, a cidadania torna-se puramente nominal. O sujeito é nacional de um Estado, mas não é cidadão de sua economia. Tem direitos formais, mas não tem instrumentos econômicos de realização da liberdade.
3. A apatridia econômica como falha distributiva de governo
Do ponto de vista constitucional, a apatridia econômica constitui uma falha distributiva de governo. O Estado moderno, fundado na dignidade humana e na justiça social (CF/88, art. 1º, III e IV), tem o dever de garantir que cada cidadão disponha de meios para o exercício real de sua liberdade. Quando a ordem econômica se descola da ordem constitucional, cria-se um vazio de soberania popular, em que o poder financeiro suplanta o poder político.
Esse fenômeno é visível quando:
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o Estado transfere riqueza pública para grupos privados sob o pretexto de “estabilidade” ou “mercado livre”;
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os mecanismos de crédito e de investimento são inacessíveis ao trabalhador comum;
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a política fiscal penaliza a produção e favorece a especulação;
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o capital é protegido, mas o trabalho é precarizado.
Em tais contextos, o indivíduo é cidadão de jure, mas estrangeiro de facto em sua própria pátria.
Vive sob as leis do Estado, mas fora de sua proteção efetiva. É, portanto, um apátrida econômico.
4. A relação entre apatridia e despersonalização do trabalho
A economia moderna, marcada pela automação e pela financeirização, tende a reduzir o homem à condição de recurso humano — um fator de produção intercambiável. Quando o trabalho perde sua dimensão pessoal e espiritual, o homem perde seu lugar no mundo.
A apatridia econômica manifesta-se, então, como alienação extrema: o sujeito não reconhece a si mesmo no produto de seu trabalho, nem percebe o sentido de sua atividade. Tal como o apátrida jurídico é invisível perante o Estado, o apátrida econômico é invisível perante o mercado.
Em termos teológicos e morais, poderíamos dizer:
“Quem perde o domínio sobre o fruto de seu trabalho perde também a imagem de Deus que nele habita.”
A economia, descolada da ética, gera desfiliação espiritual. A propriedade, que deveria ser o prolongamento da pessoa (segundo São Tomás de Aquino), torna-se privilégio abstrato de conglomerados sem rosto.
5. Impactos estruturais da apatridia econômica
A apatridia econômica não é apenas injusta: é ineficiente e autodestrutiva.
Entre seus efeitos, destacam-se:
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Erosão do capital humano: o trabalhador sem estabilidade e sem expectativa de progresso reduz sua produtividade e criatividade.
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Contração da base tributária: a informalidade e o desalento corroem as receitas públicas.
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Cultura de dependência: substitui-se o mérito pela sobrevivência, e o investimento pelo assistencialismo.
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Crise de confiança institucional: o cidadão deixa de ver o Estado como expressão de sua vontade e passa a vê-lo como força opressora.
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Fuga de cérebros e de capitais: a nação deixa de ser um projeto comum e se fragmenta em interesses particulares.
Em última análise, a apatridia econômica dissolve o próprio conceito de pátria, pois uma pátria que não ampara é uma abstração jurídica sem corpo vivo.
6. Superação: da apatridia à comunhão econômica
Superar a apatridia econômica exige mais do que políticas compensatórias; requer uma restauração da ordem moral da economia. Essa restauração passa por três princípios:
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Primazia do trabalho sobre o capital: o trabalho é anterior ao capital, porque o capital é trabalho acumulado no tempo kairológico (como ensinava Leão XIII na Rerum Novarum).
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Função social da propriedade: a riqueza deve servir à comunidade, não apenas ao indivíduo, sob pena de converter-se em idolatria.
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Solidariedade orgânica: o Estado deve coordenar, e não substituir, a cooperação entre classes, setores e regiões, a fim de que a economia seja expressão da vida nacional.
A verdadeira política econômica é aquela que devolve ao homem o direito de participar ativamente da criação de valor, e não apenas de consumir o que outros produzem. É o que o Papa João Paulo II chamou de “democracia econômica”, em que o trabalho se torna o instrumento de santificação e de pertença social.
7. Conclusão
A apatridia econômica é a forma silenciosa de exílio do século XXI. Não se dá pela expulsão territorial, mas pela exclusão funcional: milhões de cidadãos que pertencem à nação apenas no papel, mas não participam de sua riqueza, de sua cultura produtiva e de suas decisões econômicas.
É dever do Estado constitucional restaurar o vínculo entre cidadania e soberania econômica, para que o homem volte a ser sujeito — e não objeto — da história. Assim como a apatridia jurídica clama por um direito à nacionalidade, a apatridia econômica clama por um direito à propriedade moral, isto é, o direito de cada homem ser senhor de seu próprio trabalho e corresponsável pelo destino comum.
Quando o Estado falha nesse dever, deixa de ser pátria e se torna simples administração de domínio. Mas quando reconhece no cidadão a imagem de Deus e o chama à coparticipação na obra da criação, a economia volta a ser caminho de liberdade — e a pátria, de fato, volta a existir.
Bibliografia
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JOÃO PAULO II. Laborem Exercens (1981) e Centesimus Annus (1991).
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MARITAIN, Jacques. Humanismo Integral. São Paulo: Paulus, 2006.
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