A modernidade revolucionária, ao dissociar o laço sacramental do laço civil, produziu uma ruptura profunda entre as ordens natural e sobrenatural. Essa ruptura não é apenas um tema acadêmico: moldou práticas (como o casamento civil separado do sacramento), alterou hábitos sacramentais (a perda do batismo neonatal em muitas comunidades) e deslocou a autoridade normativa da Igreja para o aparato administrativo do Estado. Para quem professa a fé cristã, a reação legítima não é a imitação dos métodos pela revolução (violência, retórica incendiária, ruptura anárquica), mas uma contrarrevolução moral e institucional: uma ação discreta, paciente e política que restabeleça a primazia do sacramento e da verdade.
1. Por que evitar o impulso revolucionário — e por que também evitar a violência
A história brasileira oferece lições difíceis. Movimentos que, por razões espirituais ou sociais, rejeitaram a ordem republicana — como a experiência de Canudos liderada por Antônio Conselheiro — terminaram em tragédia quando o confronto com o poder armado do Estado se radicalizou. A lembrança de Canudos mostra tanto a força da fé popular quanto o risco terrível de transformar dissenso em brasas militares. É uma advertência: a defesa da Igreja e da família não pode ser confundida com romantização da violência.
Além disso, a doutrina cristã contemporânea distingue com clareza entre a celebração da paz e o reconhecimento da legítima defesa: enquanto a tradição evangélica e magistério incentivam a busca da paz e a conversão de inimigos, reconhece-se, por outro lado, que a defesa de inocentes e da ordem pode, em circunstâncias extremas, justificar o uso de força — sempre como último recurso e avaliada à luz do direito natural e da prudência moral. O Catecismo da Igreja Católica trata dessa matéria com precisão, indicando que a legítima defesa pode ser um dever grave para quem tem responsabilidade pela vida de outros, mas que isso não libera a tentativa persistente de soluções pacíficas.
Portanto: rejeitar a revolução não significa abraçar a violência. Pelo contrário: a contrarrevolução digna toma a via política, educacional e institucional — reservando qualquer reflexão sobre legítima defesa às hipóteses estritas e raras que a tradição moral contempla.
3. Estratégia prática: discreta, legal e política
A contrarrevolução eficaz é uma arte de redes — redes de paróquias, associações leigas, juristas, professores, vereadores, deputados estaduais e federais que partilhem objetivos concretos. Algumas linhas estratégicas:
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Reforço pastoral e catequético
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Recuperar o costume do batismo neonatal e promover a catequese pré-matrimonial que ressalte a natureza sacramental do matrimônio.
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Formar ministros e leigos para que expliquem com clareza e caridade o sentido público do sacramento. (ação discreta: folhetos, encontros locais, formação de agentes).
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Incidência jurídica e regulamentar
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Trabalhar propostas que facilitem o reconhecimento civil automático do matrimônio celebrado na Igreja por meio de protocolos de comunicação entre paróquias e cartórios, certificações eletrônicas e alterações administrativas — sem violar princípios constitucionais, mas buscando harmonizar registros.
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Apoiar projetos de lei locais que deem andamento prático ao reconhecimento entre esferas, redigidos com assessoria jurídica competente e apresentados por parlamentares aliados.
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Articulação política discreta
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Formar frentes multipartidárias de apoio a medidas específicas (ex.: proteção da liberdade religiosa, facilitação do registro batismal como documento válido para fins civis).
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Evitar gestos simbólicos grandiosos e espetaculares; preferir diálogo com prefeitos, promotores, cartórios e conselhos municipais.
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Cultura e comunicação
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Produzir materiais pedagógicos, documentários curtos e séries de entrevistas que mostrem o valor social do batismo e do matrimônio sacramental — sempre com argumentação histórica, sociológica e teológica, evitando polarizações.
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Promover obras de assistência (creches, escolas, abrigos) que consolidem a confiança na Igreja como instituição de bem comum — o capital moral abre caminhos políticos.
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Estratégia de prudência sobre o uso legítimo da força
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Enfatizar que qualquer reconhecimento da legítima defesa é estrito a critérios morais e jurídicos; que ações armadas são inaceitáveis como instrumento de política cotidiana; que o objetivo é esgotar todos os meios pacíficos e legais.
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Trabalhar a formação cívica para que a população compreenda como a ordem pública se preserva dentro do Estado de Direito e como a defesa legítima é medida extraordinária, não programa político. (Cuidar para que o discurso sobre “legítima defesa” não funcione como pretexto para militarização política).
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4. Ética e estilo: a contrarrevolução que é testemunho
A contrarrevolução desejável tem estilo. Não se apresenta como milícia do ressentimento, mas como sacramento da paciência: modos humildes, linguagem respeitosa, constância. A estratégia discreta evita o espetáculo porque sabe que o protagonismo público sem substância termina por esvaziar a causa. A ação eficaz mistura oração, estudo, organização e política proposta de baixo, localmente, rumo a mudanças legais e culturais passo a passo.
5. Conclusão — restaurar por meios que preservem pessoas
A luta por devolver à Igreja seu lugar de matriz da vida familiar é legítima; mas a restauração exige sabedoria. O caminho mais fiel à tradição cristã é a construção paciente de redes políticas e sociais, combinada com formação e propostas legais. A contrarrevolução que triunfa é aquela que transforma corações, reconstrói instituições e, por meios inteiramente legais e não violentos, recoloca a ordem sacramental no centro da vida pública. Só assim se evita repetir as tragédias do passado e se funda um futuro ordenado segundo a verdade e a caridade.
Bibliografia essencial
Doutrina e filosofia
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Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 6; II-II, q. 40; q. 64.
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Leão XIII. Rerum Novarum (1891); Immortale Dei (1885); Sapientiae Christianae (1890).
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Pio XI. Divini Redemptoris (1937) — condenação do comunismo ateu e defesa da ordem cristã.
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Joseph de Maistre. Considérations sur la France (1796).
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Louis de Bonald. Théorie du pouvoir politique et religieux (1796).
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Plínio Corrêa de Oliveira. Revolução e Contra-Revolução (1959).
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Dom Prosper Guéranger. Institutions liturgiques (1840) — defesa da unidade espiritual e cultural da cristandade.
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Antônio Conselheiro. Apontamentos dos preceitos divinos para os juízos eclesiásticos (manuscritos de Canudos).
História e política
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Euclides da Cunha. Os Sertões (1902).
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Gilberto Freyre. Ordem e Progresso (1959) — análise sociológica da transição entre Império e República.
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Alceu Amoroso Lima. O Espírito e o Mundo Moderno (1940).
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Paulo Mercadante. A Consciência Conservadora no Brasil (1965).
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Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições (1995) — crítica da modernidade como dissolução da ordem cristã.
Direito natural e filosofia política
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Francisco Suárez. De Legibus ac Deo Legislatore (1612).
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Hilaire Belloc. The Servile State (1912).
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Jacques Maritain. Humanismo Integral (1936).
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Juan Donoso Cortés. Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo (1851).
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