I. Schopenhauer e a vontade como estrutura de repetição
Em O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer afirma que o mundo fenomenal é a representação da vontade — isto é, o modo como a vontade universal se manifesta no plano das formas, fenômenos e relações. O mundo visível é apenas o espelho da vontade invisível, e em cada fragmento do real a totalidade da vontade se reflete.
Essa estrutura é, em essência, fractal: a parte contém o todo e o todo se expressa em cada parte.
Cada indivíduo é uma miniatura da totalidade, uma mônada de vontade, tal como cada unidade federativa é uma miniatura do Estado nacional. A recursividade ontológica que Schopenhauer descreve — vontade → representação → vontade — encontra eco direto na recursividade jurídica — soberania → constituição → representação.
II. A transposição política: do ser à forma constitucional
Se o mundo político é também uma forma de representação, então o Estado é a vontade coletiva tornada forma jurídica. A Constituição é o ponto de condensação dessa vontade — sua forma representada — e o sistema federativo é o modo pelo qual essa vontade se repete em escalas.
Logo, uma ordem constitucional fractal seria aquela em que a vontade política se manifesta integralmente em cada nível da estrutura estatal:
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a União expressa a vontade do todo;
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os Estados expressam o todo em escala menor;
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os Municípios expressam a mesma vontade no nível local.
A representação, nesse sistema, deixa de ser puramente vertical (base → cúpula) e passa a ser holográfica: cada parte contém o reflexo integral da soberania popular.
III. O problema da representatividade: entre a unidade e a pluralidade
A representatividade política numa ordem fractal exige uma nova compreensão do vínculo entre parte e todo. Num modelo tradicional, cada nível representa apenas sua fração da vontade coletiva. Mas num modelo fractal, cada nível contém o todo em potência.
Isso implica que:
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O poder representativo é distribuído recursivamente, e não hierarquicamente.
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A legitimidade política é simultaneamente local e nacional, pois o mesmo princípio se repete em diferentes escalas.
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A unidade soberana não é centralizada, mas espalhada por toda a estrutura, tal como a energia vital schopenhaueriana.
Essa estrutura dissolveria a oposição entre “povo” e “Estado”, substituindo-a por uma concepção orgânica e auto-semelhante da soberania.
IV. O Senado e a recursão da vontade representada
No caso brasileiro, o Senado Federal é o símbolo mais evidente dessa lógica fractal.
Cada unidade federativa tem igual número de senadores — o que traduz, no plano político, a ideia de que cada parte da vontade nacional é integralmente digna de representação.
Mas, em uma ordem fractal aperfeiçoada, essa lógica se expandiria:
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Cada câmara legislativa (federal, estadual, municipal) seria uma reprodução autossimilar da mesma estrutura representativa.
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O voto e o mandato deixariam de ser puramente delegativos e passariam a ser reflexivos: o cidadão não “cede” a vontade, mas participa de sua replicação em várias escalas.
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O ato político seria, portanto, recursivo — cada decisão local refletindo a decisão nacional e vice-versa.
Nesse sentido, a representação se tornaria fenomenologia da vontade popular — cada instância sendo representação parcial e integral ao mesmo tempo.
V. O risco da hipertrofia da vontade
Schopenhauer, contudo, advertiria que a vontade é cega e irracional. Assim, uma ordem constitucional fractal corre o risco de amplificar, em todas as escalas, os mesmos impulsos de poder, egoísmo e conflito, se não houver o princípio de mediação racional — a representação iluminada pela razão e pela ética.
Para que a recursão política não se transforme em caos fractal, é necessário que a razão constitucional (o logos jurídico) atue como princípio ordenador, tal como a forma geométrica organiza o caos da vontade.
O fractal constitucional deve, pois, conter o princípio da moderação schopenhaueriana: reconhecer a vontade em todas as escalas, mas sujeitá-la à forma racional da lei.
VI. Conclusão: da vontade una à representação recursiva
Numa ordem constitucional fractal, a representatividade política não é apenas a soma dos representantes, mas a imagem recursiva da soberania. Cada unidade federativa, cada cidadão e cada instituição participam de uma mesma matriz de vontade que se replica integralmente — tal como o mundo schopenhaueriano, em que cada fenômeno é reflexo da vontade universal.
Assim, o federalismo fractal seria:
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juridicamente simétrico, porque cada parte reflete o todo;
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politicamente recursivo, porque cada nível representa a mesma soberania;
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metafisicamente coerente, porque a vontade do povo se expressa como um princípio de autossimilaridade, e não de subordinação.
O resultado seria uma república de espelhos: cada porção do poder refletindo o poder inteiro, cada cidadão refletindo o corpo político total. E é nesse reflexo que o Brasil poderia reencontrar a harmonia entre unidade e diversidade — a verdadeira expressão do mundo como vontade e representação constitucional.
Bibliografia sugerida:
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Arthur Schopenhauer. O Mundo como Vontade e Representação. Trad. Jair Barboza, Editora UNESP, 2005.
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Carl Schmitt. Teoria da Constituição. Del Rey, 1996.
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José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, 2022.
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Benoît Mandelbrot. The Fractal Geometry of Nature. W.H. Freeman, 1982.
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Hannah Arendt. A Condição Humana. Forense Universitária, 2007.
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Montesquieu. Do Espírito das Leis. Martins Fontes, 1996.
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