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terça-feira, 11 de novembro de 2025

O problema do referente em matéria de “pobreza energética” - um ensaio sobre o sentido elástico do termo e sua manipulação semântica na política contemporânea

1. Introdução

Quando uma figura pública — como Janja, primeira-dama do Brasil — fala em pobreza energética, o público presume que se trata de uma expressão técnica, já que a palavra “energia” remete tanto à eletricidade quanto ao vigor humano. Contudo, o termo é polissemântico, e por isso corre o risco de tornar-se um significante flutuante, isto é, uma palavra que muda de sentido conforme a intenção ideológica do falante.

Como advertia Olavo de Carvalho, o verdadeiro problema das palavras modernas não é o significado, mas o referente. O sentido pode ser múltiplo; o referente, porém, deve ser único e identificável na realidade. Assim, para compreender “pobreza energética”, é preciso antes perguntar: de que energia estamos falando?

2. O termo “energia” e seus campos de referência

O conceito de energia, em sua origem grega (energeia, ato, movimento), ganhou significados distintos em três domínios:

Campo Referente de “energia” Natureza
Físico-econômico Capacidade de realizar trabalho físico (eletricidade, gás, combustível). Objetiva e mensurável (kWh, joules).
Biológico-vital Energia metabolizada pelo corpo humano (nutrição, calorias, vigor). Orgânica e subjetiva.
Simbólico-espiritual Vigor moral, disposição interior, “força de vida”. Metafórica e moral.

A pobreza energética, portanto, só é inteligível se o campo de referência for fixado previamente. Caso contrário, o termo se torna um híbrido semântico, capaz de fundir biologia, economia e moral em um mesmo discurso.

3. Duas realidades distintas

a) No sentido econômico-social

“Pobreza energética” é a privação de acesso a fontes de energia modernas e acessíveis — eletricidade, gás, aquecimento, refrigeração. Trata-se de um problema estrutural que afeta o conforto, a produtividade e a saúde pública. O referente, aqui, é o sistema técnico e econômico de distribuição de energia.

Exemplo: famílias que gastam mais de 10% da renda com eletricidade ou vivem sem rede elétrica.

b) No sentido biológico-vital

Se o referente for o corpo humano, então “pobreza energética” designa a insuficiência calórica ou metabólica — em outras palavras, a desnutrição ou o colapso vital decorrente da fome. Aqui, o termo energia é fisiológico, e não técnico.

Exemplo: indivíduos que, por falta de alimento, perdem força, calor corporal e capacidade de trabalho.

4. A confusão moderna: deslocamento do referente

No discurso político contemporâneo, os dois referentes são misturados deliberadamente. A retórica da “pobreza energética” passa a sugerir que a falta de eletricidade enfraquece o corpo e a alma do povo, criando uma equivalência emocional entre infraestrutura e vitalidade humana.

Esse deslocamento é típico do discurso populista ou ideologizado, que transforma uma carência técnica (energia elétrica) em uma narrativa moral totalizante (o povo exaurido). O termo adquire, então, poder retórico, mas perde precisão conceitual.

Em termos olavianos, trata-se de uma transposição ilegítima de referentes — um caso de sofisma semântico, em que o orador transfere propriedades de um domínio ontológico para outro (da física à biologia, da economia à moral).

5. O método de Olavo: fixar o referente antes do significado

Olavo de Carvalho insistia que:

“Antes de discutir o sentido de uma palavra, determine o que ela designa. O referente é o elo entre linguagem e realidade.”

Aplicando essa regra, vemos que “pobreza energética” só é conceito legítimo se o referente for fixo:

  • Econômico: falta de acesso a energia elétrica e térmica (questão técnica e social).

  • Biológico: falta de energia vital por desnutrição (questão fisiológica).

Fora disso, o termo é mero slogan ideológico, usado para criar consenso emocional sem base empírica.

6. Conclusão

A expressão “pobreza energética” é um exemplo perfeito do embaraço linguístico da modernidade. Seu sentido é elástico; seu referente, flutuante. Quando o discurso político a utiliza sem distinção, cria um curto-circuito semântico entre corpo, economia e moral — o que encanta as massas, mas confunde a inteligência.

A análise do referente revela que há, na verdade, duas pobrezas energéticas:

  1. Uma econômica, externa e mensurável.

  2. Outra biológica, interna e vital.

Confundi-las é dissolver o pensamento na retórica. Separá-las é restaurar a precisão que ancora a linguagem na realidade — condição primeira da filosofia, da política honesta e da verdadeira caridade.

Bibliografia essencial

  • Carvalho, Olavo de. O Jardim das Aflições.

  • Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus.

  • Heidegger, Martin. Ser e Tempo.

  • Arendt, Hannah. A Condição Humana.

  • ONU / IEA. Energy Poverty and Development Report, 2022.

  • Ministério da Fazenda (Brasil). Relatório sobre Pobreza Energética, 2023.

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