1. Introdução
Quando uma figura pública — como Janja, primeira-dama do Brasil — fala em pobreza energética, o público presume que se trata de uma expressão técnica, já que a palavra “energia” remete tanto à eletricidade quanto ao vigor humano. Contudo, o termo é polissemântico, e por isso corre o risco de tornar-se um significante flutuante, isto é, uma palavra que muda de sentido conforme a intenção ideológica do falante.
Como advertia Olavo de Carvalho, o verdadeiro problema das palavras modernas não é o significado, mas o referente. O sentido pode ser múltiplo; o referente, porém, deve ser único e identificável na realidade. Assim, para compreender “pobreza energética”, é preciso antes perguntar: de que energia estamos falando?
2. O termo “energia” e seus campos de referência
O conceito de energia, em sua origem grega (energeia, ato, movimento), ganhou significados distintos em três domínios:
| Campo | Referente de “energia” | Natureza |
|---|---|---|
| Físico-econômico | Capacidade de realizar trabalho físico (eletricidade, gás, combustível). | Objetiva e mensurável (kWh, joules). |
| Biológico-vital | Energia metabolizada pelo corpo humano (nutrição, calorias, vigor). | Orgânica e subjetiva. |
| Simbólico-espiritual | Vigor moral, disposição interior, “força de vida”. | Metafórica e moral. |
A pobreza energética, portanto, só é inteligível se o campo de referência for fixado previamente. Caso contrário, o termo se torna um híbrido semântico, capaz de fundir biologia, economia e moral em um mesmo discurso.
3. Duas realidades distintas
a) No sentido econômico-social
“Pobreza energética” é a privação de acesso a fontes de energia modernas e acessíveis — eletricidade, gás, aquecimento, refrigeração. Trata-se de um problema estrutural que afeta o conforto, a produtividade e a saúde pública. O referente, aqui, é o sistema técnico e econômico de distribuição de energia.
Exemplo: famílias que gastam mais de 10% da renda com eletricidade ou vivem sem rede elétrica.
b) No sentido biológico-vital
Se o referente for o corpo humano, então “pobreza energética” designa a insuficiência calórica ou metabólica — em outras palavras, a desnutrição ou o colapso vital decorrente da fome. Aqui, o termo energia é fisiológico, e não técnico.
Exemplo: indivíduos que, por falta de alimento, perdem força, calor corporal e capacidade de trabalho.
4. A confusão moderna: deslocamento do referente
No discurso político contemporâneo, os dois referentes são misturados deliberadamente. A retórica da “pobreza energética” passa a sugerir que a falta de eletricidade enfraquece o corpo e a alma do povo, criando uma equivalência emocional entre infraestrutura e vitalidade humana.
Esse deslocamento é típico do discurso populista ou ideologizado, que transforma uma carência técnica (energia elétrica) em uma narrativa moral totalizante (o povo exaurido). O termo adquire, então, poder retórico, mas perde precisão conceitual.
Em termos olavianos, trata-se de uma transposição ilegítima de referentes — um caso de sofisma semântico, em que o orador transfere propriedades de um domínio ontológico para outro (da física à biologia, da economia à moral).
5. O método de Olavo: fixar o referente antes do significado
Olavo de Carvalho insistia que:
“Antes de discutir o sentido de uma palavra, determine o que ela designa. O referente é o elo entre linguagem e realidade.”
Aplicando essa regra, vemos que “pobreza energética” só é conceito legítimo se o referente for fixo:
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Econômico: falta de acesso a energia elétrica e térmica (questão técnica e social).
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Biológico: falta de energia vital por desnutrição (questão fisiológica).
Fora disso, o termo é mero slogan ideológico, usado para criar consenso emocional sem base empírica.
6. Conclusão
A expressão “pobreza energética” é um exemplo perfeito do embaraço linguístico da modernidade. Seu sentido é elástico; seu referente, flutuante. Quando o discurso político a utiliza sem distinção, cria um curto-circuito semântico entre corpo, economia e moral — o que encanta as massas, mas confunde a inteligência.
A análise do referente revela que há, na verdade, duas pobrezas energéticas:
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Uma econômica, externa e mensurável.
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Outra biológica, interna e vital.
Confundi-las é dissolver o pensamento na retórica. Separá-las é restaurar a precisão que ancora a linguagem na realidade — condição primeira da filosofia, da política honesta e da verdadeira caridade.
Bibliografia essencial
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Carvalho, Olavo de. O Jardim das Aflições.
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Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus.
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Heidegger, Martin. Ser e Tempo.
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Arendt, Hannah. A Condição Humana.
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ONU / IEA. Energy Poverty and Development Report, 2022.
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Ministério da Fazenda (Brasil). Relatório sobre Pobreza Energética, 2023.
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