Em tempos de instabilidade política e econômica, um dos movimentos mais inteligentes que um agente cultural pode fazer é migrar para espaços onde a segurança jurídica é maior, o risco é menor e a colheita de frutos é mais previsível. Poucos percebem que isso não vale apenas para capitais financeiros: vale também para o capital intelectual, isto é, para livros, obras culturais e bens de conhecimento.
Neste sentido, a assimetria entre legislações autorais pelo mundo cria uma oportunidade singular: a arbitragem internacional de domínio público — o que chamo de copyright carry trade.
1. O que é o copyright carry trade?
No mercado financeiro, o carry trade consiste em tomar um empréstimo em uma moeda com juros baixos e aplicar esse dinheiro em outra moeda com juros mais altos, capturando a diferença.
No campo do direito autoral, ocorre algo surpreendentemente semelhante.
Países diferentes têm prazos distintos de proteção autoral:
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México — 100 anos após a morte do autor (um dos prazos mais longos do mundo)
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Brasil (lei de 1973) — 60 anos
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Índia — 60 anos
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Canadá (regra anterior a 2022) — 50 anos
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Nova Zelândia — 50 anos
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Austrália (para autores mortos antes de 1955) — 50 anos
Essa desigualdade gera um spread regulatório:
A mesma obra que é protegida numa jurisdição pode estar livre em outra.
Quem entende isso enxerga uma oportunidade estratégica: comprar um livro físico onde ele ainda está sob proteção e vendê-lo digitalmente onde ele já é domínio público.
2. A operação: compra, digitalização e arbitragem jurídica
Suponhamos que você compre um livro mexicano no Brasil, onde ainda está protegido por 100 anos pós-morte. Esse exemplar físico, porém, não altera o status da obra em outros países.
Se, por exemplo, no Canadá ou Índia a obra já for domínio público, você pode:
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digitalizar o exemplar no Brasil;
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publicar legalmente no Canadá, Nova Zelândia, Índia ou Austrália, conforme o caso;
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vender o e-book nessas jurisdições sem violar nenhum direito.
Isso não é burla: é a aplicação rigorosa da territorialidade do direito autoral, que sempre foi uma pedra angular da legislação internacional.
Neste momento, aquilo que parecia apenas uma diferença legislativa torna-se uma oportunidade de arbitragem cultural, exatamente análoga ao carry trade financeiro.
3. Onde está o “lucro” dessa arbitragem?
No carry trade monetário, ganha-se na diferença entre juros. No copyright carry trade, ganha-se em três frentes:
a) Risco jurídico zero
O domínio público é a zona mais segura do direito: ninguém pode reivindicar nada.
b) Ausência de custos de licenciamento
Não há royalties, nem taxas, nem renegociações: a margem é integralmente sua.
c) Retorno integral do trabalho
Todo o valor acrescentado pela digitalização — tempo, esforço e qualidade — é seu. Você não vende apenas um livro: vende comodidade, acesso e preservação.
A segurança jurídica do domínio público funciona como um porto seguro intelectual, equivalente à Suíça no sistema bancário.
4. Por que isso é especialmente relevante em tempos de incerteza?
Porque quanto maior a instabilidade política e econômica, maior a necessidade de operar em regiões onde:
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o risco jurídico é minimizado;
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a lei não retroage;
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o prazo é claro;
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as mudanças não são arbitrárias.
No México, por exemplo, uma obra pode ficar presa por um século. No Canadá pré-2022, a mesma obra se liberta em apenas 50 anos.
Essa diferença de 50 anos significa duas gerações inteiras de oportunidades editoriais legítimas.
Publicar onde há domínio público é, portanto, uma forma de hedge intelectual, uma proteção contra sistemas jurídicos que, por excesso de “proteção”, acabam gerando escassez cultural.
5. A compra no Brasil como “empréstimo” na arbitragem
Quando você adquire um livro físico no Brasil — muitas vezes um exemplar antigo, perdido e inacessível — esse ato funciona como um empréstimo intelectual inicial, cujo “principal” é pago no ato da compra.
Mas o retorno vem:
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na digitalização,
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na republicação,
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e na venda em jurisdições mais favoráveis.
A compra é o “funding”.
A venda é o “yield”.
E a diferença entre as legislações é o “spread”.
Trata-se de uma operação econômica, sim, mas também uma operação civilizatória: resgatar obras que estavam enterradas em sistemas de proteção eternizante e devolvê-las a sociedades que querem lê-las.
6. Onde Há Domínio Público, Há Segurança para Colher Altos Frutos
Este é o ponto mais importante — tanto jurídico quanto metafísico.
O domínio público é o estado natural da cultura.
A proteção é transitória; a liberdade é a regra. Onde a liberdade retorna — Canadá, Índia, Nova Zelândia, Austrália — a colheita é farta.
Em tempos de incerteza, vale sempre lembrar:
Onde há domínio público, há segurança jurídica; e onde há segurança jurídica, há colheita de altos frutos.
Esse é o fundamento intelectual da estratégia.
Conclusão
O copyright carry trade não é uma brecha: é a consequência lógica de um mundo onde cada país legisla diferentemente sobre a memória e o valor do conhecimento.
Aquele que domina essa assimetria transforma livros esquecidos em capital vivo; ransforma digitalização em oportunidade; e transforma o passado em patrimônio produtivo.
É a síntese perfeita entre prudência, inteligência e serviço cultural.
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