Introdução
Desde o século XIX, a formação intelectual brasileira tem se apoiado sobre um edifício epistemológico que busca descrever o Brasil a partir dos métodos das ciências naturais e sociais europeias. O marco inaugural dessa tendência é o concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1840, cujo objetivo era “descobrir a melhor maneira de se escrever a história do Brasil”. O vencedor, Carl Friedrich Philipp von Martius, naturalista alemão, apresentou um texto de aparência científica e imparcial, propondo uma narrativa fundada na observação empírica dos fatos e na catalogação dos elementos humanos que compunham a nação nascente.
O problema, contudo, é que esse paradigma — que se tornaria o núcleo do chamado codex brasiliana — nasceu dissociado da verdade metafísica e submetido à conveniência ideológica. O Brasil foi transformado em objeto de estudo, e não em sujeito histórico. A ciência tornou-se um espelho deformante que, sob o pretexto de neutralidade, consolidou a separação entre o humano e o divino, entre o fato e o sentido.
1. A origem do codex brasiliana
O artigo de Luiz Roberto Fontes (2018) recorda que o IHGB foi fundado com o propósito de “coligir, metodizar e publicar” documentos para sustentar a história e a geografia do Império. Essa estrutura de pensamento visava construir uma narrativa unificadora, uma “história nacional” que revelasse a imagem do Brasil enquanto entidade autônoma, desvinculada da antiga sede do Reino de Portugal.
O naturalista von Martius, autor do ensaio Como se deve escrever a História do Brasil (1845), propôs que a história fosse escrita a partir da observação dos fatos empíricos e das “três raças” que formaram o povo brasileiro: a indígena, a branca e a negra. Essa abordagem, inspirada no método naturalista e na filosofia positiva, reduziu a complexidade espiritual da nação a uma mistura de elementos biológicos e culturais, inaugurando o paradigma do brasilianismo científico — o estudo do Brasil como fenômeno natural, não como missão providencial.
2. O método da catalogação e a negação da verdade
A operação epistemológica inaugurada por Martius se aproxima da crítica feita por Claude Lévi-Strauss em A Mente Selvagem: a história moderna é um método de catalogação destinado a separar o humano do anti-humano. Ela não busca a verdade, mas apenas organiza os fatos segundo categorias arbitrárias.
O próprio Lévi-Strauss advertia que “a história pode levar a qualquer caminho” — isto é, não há nela teleologia intrínseca. Ela se torna um jogo de ordenações, e o historiador, um classificador que manipula símbolos sem penetrar o seu sentido. Essa é precisamente a atitude do naturalista diante do homem: ele observa, descreve, e organiza, mas não compreende o logos que anima o ser humano e o orienta para o bem e para a verdade.
Assim, quando Indiana Jones — símbolo da modernidade empírica — afirma que “a arqueologia começa pelos fatos, não pela verdade”, ele exprime, de forma popular, o mesmo dilema epistemológico que estrutura a mentalidade do codex brasiliana: a substituição da sabedoria pela coleta de dados, da contemplação pela técnica.
3. Durkheim e o comportamento como fetiche
A máxima de Émile Durkheim — “os fatos sociais devem ser tratados como coisas” — forneceu a base conceitual para toda a sociologia brasileira de matriz positivista. O comportamento humano passou a ser descrito como um fenômeno observável, mensurável e classificável.
Entretanto, ao isolar o fato de sua causa formal (o logos) e de sua causa final (o télos), o método sociológico converteu-se numa pseudociência behaviorista, incapaz de distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso. O Brasil passou a ser explicado em termos de costumes, “três raças” e geografias, sem qualquer referência à ordem moral e à vocação espiritual que deram origem à civilização luso-cristã.
A consequência é a conservação do que é conveniente e dissociado da verdade: a manutenção de uma ordem intelectual que se proclama científica, mas que serve, na prática, às ideologias revolucionárias — sejam liberais, positivistas ou marxistas — que pretendem reescrever o Brasil fora da continuidade com Portugal e com Cristo.
4. O conservantismo revolucionário e a ideologia da neutralidade
Ao descrever Martius como “um brasilianista” que defendeu a monarquia e descreveu as raças sem juízo moral, o artigo de Fontes revela o paradoxo central do brasilianismo: ele aparenta conservar — mas conserva apenas as formas, não os princípios. É o que se pode chamar de conservantismo revolucionário: a tentativa de preservar as estruturas exteriores da civilização enquanto se dissolve a sua substância espiritual.
5. A restauração da hierarquia entre fato e verdade
Contra o códice brasiliana, é preciso restaurar a hierarquia clássica entre fato e verdade:
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o fato é o meio pelo qual a verdade se manifesta;
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a verdade é o fim último que confere sentido aos fatos.
Sem essa hierarquia, o historiador se torna burocrata da memória e o cientista, servo da conveniência. O verdadeiro saber histórico, como ensina Santo Tomás de Aquino, nasce da ordenação dos acontecimentos segundo a causa final, que é o Bem. E o filósofo Giambattista Vico, em sua Scienza Nuova, já advertia que a história das nações não pode ser compreendida senão à luz da providência divina, pois “Deus é o autor das causas das coisas humanas”.
Assim, o Brasil só pode ser compreendido como parte da missão luso-cristã de servir a Cristo em terras distantes, como prolongamento do milagre de Ourique e da unidade espiritual de Portugal. Fora disso, a história brasileira se reduz à arqueologia do erro — um catálogo de fatos sem alma.
Conclusão
O codex brasiliana representa a cristalização de um método que confunde ciência com verdade e neutralidade com virtude. Ao reduzir o homem a comportamento e a história a catálogo, ele produziu uma pseudociência conveniente, serva das ideologias que negam a continuidade espiritual entre Brasil e Portugal.
A verdadeira restauração da história brasileira passa por reintegrar o fato à verdade, a razão à fé e o império à sua vocação divina. Enquanto o historiador moderno se limita a descrever, o historiador verdadeiro contempla — e, ao contemplar, compreende que a história do Brasil é um capítulo da história da salvação, não da revolução.
Bibliografia essencial
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Carl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a História do Brasil (1845).
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Luiz Roberto Fontes, “Como se deve escrever a História do Brasil”, Vetores & Pragas, n. 50, 2018.
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Émile Durkheim, Les règles de la méthode sociologique (1895).
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Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage (1962).
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Giambattista Vico, Scienza Nuova (1725).
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Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, I-II, q. 1, a. 8.
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Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições (1995).
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Hilaire Belloc, Europe and the Faith (1920).
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