1. O momento da consolidação da apatria
A apatria brasileira se consolidou definitivamente no século XIX, após a Independência formal e, sobretudo, com a Proclamação da República em 1889, quando se consumou a ruptura simbólica com o Reino de Portugal e com a dimensão sagrada do poder.
O Império do Brasil, embora ainda guardasse traços do espírito português — a monarquia, o catolicismo de Estado, a continuidade jurídica —, era o último elo vivo com a ordem fundada em Deus. Quando esse elo foi rompido, a nação deixou de ser uma extensão do Reino e passou a ser um experimento político.A nova ordem não queria restaurar o Brasil na Cristandade; queria fundar o Brasil como Estado absoluto, com sua própria religião cívica.
Foi nesse instante que a apatria, antes latente, passou a ser o fundamento ideológico do país.
A ruptura deixou de ser acidente e se tornou princípio.
2. A disputa pelos nomes: brasileiros, brasilianos, brasilienses
A linguagem, como sempre, revelou o espírito da época. As palavras brasileiro, brasiliano e brasiliense refletem três estágios da alma nacional:
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Brasileiro – o termo mais antigo, originário de Portugal, derivado de “brasil”, o pau-brasil. No português quinhentista, “brasileiro” era o comerciante da madeira — o homem que participava da expansão do Reino, servindo à Coroa e à Cruz. O “brasileiro” é, portanto, português de além-mar, membro de uma pátria una, que atravessa o oceano como quem prolonga o corpo do Império. Por natureza, ele se santifica através do trabalho servindo a Cristo em terras distantes.
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Brasiliense – o nome do habitante de Brasília, a cidade que materializa o Estado fundado na paatria. Brasília foi planejada, não nascida. É o símbolo máximo da engenharia política sobre a vida — o sonho tecnocrático de criar um povo novo, desligado das raízes portuguesas, católicas e tradicionais. Seu traçado racionalista, inspirado em Roma e nas utopias urbanísticas modernistas, pretendia fazer do Planalto Central a “Terceira Roma” — mas uma Roma sem Pedro, sem Cristo e sem Cruz.
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Brasiliano – o nome do homem formado por esse estado de coisas..O brasiliano é o produto da apatria consolidada. Vive num país nominalmente cristão, mas espiritualmente laico; diz-se conservador, mas conserva apenas o que é conveniente ao poder e dissociado da verdade.
Ele representa o conservantismo revolucionário: aquele que, em nome da ordem, mantém o erro.
Sua fidelidade é à estrutura, não ao princípio.
3. O brasilianismo: fenomenologia do sujeito apátrida
O brasilianismo é a ideologia que nasce dessa dissociação: conservar o que convém, negar o que transcende. É uma fenomenologia do sujeito aprisionado no Estado, que repete gestos e palavras de uma tradição que já não compreende. Enquanto o português medieval e o brasileiro imperial tinham consciência de servir a uma missão divina — levar a fé e a cultura às terras do mundo —, o brasiliano serve à máquina: Estado, partido, corporação, ou mero interesse.
O brasiliano é o homem do simulacro: sua religião é retórica, sua moral é conveniência, seu patriotismo é espetáculo. E é essa cultura que produziu, como sintoma, a coleção “Brasiliana” da Companhia Editora Nacional — um esforço acadêmico e editorial que consolidou, sob aparência de erudição, a visão positivista e utilitária da nação. A “Brasiliana” não foi apenas uma série de livros: foi um ato simbólico de fundação ideológica. Ela estabeleceu os cânones da história nacional segundo o paradigma do Estado secular, afastando a dimensão metafísica da pátria e substituindo o Reino por uma abstração cultural.
Em termos espirituais, o brasilianismo é o ponto em que o homem deixa de ver o Todo de Deus na história e passa a ver o Estado como totalidade. É a apatria que se fez sistema.
4. A arquitetura da apatria: Brasília e a negação da organicidade
Brasília, construída no coração do território, é o templo visível da apatria. Não surgiu de aldeias, nem de caminhos de fé, mas de linhas traçadas em papel — “a comunidade imaginada”, como dizia Benedict Anderson, transformada em concreto armado. Ali, tudo é símbolo da abstração: a Esplanada, os eixos, as escalas monumentais. É a cidade que nasceu “para o futuro”, e por isso nunca pertenceu ao presente vivo do povo.
A fundação de Brasília foi a consagração do brasiliano como tipo dominante. O Brasil deixou de ser império marítimo, voltado ao Atlântico e ao mundo, e passou a ser entidade continental, voltada para dentro, autorreferente e isolada. O apelo espiritual de Lisboa foi substituído pelo culto político de Brasília.
5. Consequência espiritual: o horror metafísico
A ordem apátriada consolidada no Brasil é um horror metafísico. Onde tudo é Estado, Deus é exilado da história; e onde Deus é exilado, o homem perde a medida de si mesmo. A apatria é o inferno da uniformidade, onde a verdade é substituída pela conveniência, e a identidade, pela ideologia.
O resultado é o cansaço moral, o niilismo, a corrupção da linguagem e da fé — sintomas de um povo que foi amputado de sua própria origem e transformado em massa administrada.
6. Conclusão: restaurar o nome verdadeiro
Restaurar a pátria integral é restituir o sentido original das palavras. Ser brasileiro não é ser produto de uma revolução, mas herdeiro de uma missão. É reconhecer-se como português de além-mar, participante da mesma empresa espiritual que uniu Lisboa a Salvador, Goa a Macau.
Enquanto o brasiliano conservar o que é conveniente e dissociado da verdade, a nação permanecerá nesse buraco negro. Mas quando o “brasileiro” restaurar a consciência do Todo, reencontrará o seu nome — e com ele, o lar espiritual de que foi exilado.
Então, o Brasil deixará de ser laboratório da modernidade para ser, novamente, reino de serviço, onde o Estado se curva à Verdade e a Verdade reina sobre o Estado.
Bibliografia
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