Introdução
Se o Brasil tivesse preservado uma tradição nobiliárquica sólida, ou mesmo se tivesse reconstruído uma nova nobreza baseada no mérito, no serviço e na responsabilidade cristã, a formação do governante se daria em etapas. A autoridade política não seria conquistada por atalhos eleitorais, mas por um trabalho concreto, paciente e generoso.
Nesse modelo, mais vale ser prefeito itinerante, servindo diversas regiões, reorganizando pequenas comunidades e sanando carências locais, do que ocupar imediatamente a prefeitura de uma capital ou lançar-se em carreira meteórica rumo ao governo ou à presidência da província. O poder maior exige maturidade que somente a experiência e as gerações podem formar.
Este artigo explora essa lógica, inspirada tanto nas práticas medievais quanto nas doutrinas políticas clássicas, mostrando que a verdadeira grandeza começa no pequeno, e que o poder só é legítimo quando enraizado em serviço.
I. A estrutura tradicional do poder
Na tradição europeia pré-moderna, a formação do governante seguia um princípio fundamental:
A autoridade exige aprendizagem, e a aprendizagem exige proximidade com a realidade.
Isso significa que ninguém deveria assumir governança ampla antes de ter servido com fidelidade em pequenas unidades políticas:
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aldeias
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vilas
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castelos
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feudos regionais
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fronteiras distantes
Tal pedagogia do poder era a garantia de que o futuro príncipe não seria apenas um tecnocrata distante, mas um verdadeiro pai do povo, conhecedor de suas necessidades, das riquezas do território e da alma coletiva.
Assim funcionavam:
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os intendentes régios da França,
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os corregedores portugueses,
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os cavaleiros ingleses a serviço do rei,
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os doges venezianos que haviam começado em antigos conselhos locais,
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os governadores coloniais que antes haviam sido capitães de pequenas fortalezas.
A grandeza vinha depois.
II. A função do prefeito itinerante
A figura do “prefeito itinerante” ecoa a lógica do funcionário régio enviado às zonas necessitadas, cuja missão era:
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organizar o território,
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pacificar conflitos,
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estabelecer rotinas administrativas,
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criar infraestrutura mínima,
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formar lideranças locais confiáveis.
Essa missão exige habilidades que a capital não ensina:
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Tato humano – lidar com populações vulneráveis, entender tensões, mediar conflitos.
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Criatividade administrativa – improvisar soluções com poucos recursos.
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Coragem moral – enfrentar elites locais, corporações, caciques e vícios estruturados.
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Leitura do território – saber como o solo, o clima, a cultura e a economia moldam o comportamento coletivo.
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Paciência histórica – compreender que os frutos de uma boa administração só aparecem anos depois.
Esses elementos produzem um governante que não é meramente técnico, mas pedagogo do poder, capaz de ensinar e elevar a população.
III. O princípio da geração seguinte
A nobreza tradicional não pensava em termos de ambição pessoal, mas em termos de construção familiar e comunitária.
O poder de hoje prepara o poder de amanhã, que pertence à próxima geração.
A autoridade cresce assim:
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A primeira geração serve, forma reputação, estabiliza.
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A segunda geração herda o respeito e pode aspirar a cargos maiores.
-
A terceira geração consolida e projeta uma identidade própria à casa familiar.
Isso cria continuidade, virtude e responsabilidade, algo raro na política moderna, fragmentada e imediatista.
A expansão do poder territorial era feita assim:
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primeiro o condado,
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depois o ducado,
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mais tarde, a capital,
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e apenas quando provada e testada, a província inteira.
No Brasil imaginado sob esse modelo, não seria diferente: ninguém governaria uma capital sem que sua casa tivesse prestado, antes, décadas de serviço invisível e eficiente em regiões periféricas.
IV. O problema do poder prematuro
A modernidade introduziu o fenômeno do “carreirismo político”, onde o indivíduo pula etapas:
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vereador → prefeito → governador → presidente
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sem jamais experimentar a realidade concreta da vida cotidiana do povo
Esse modelo cria governantes descolados:
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tecnocratas
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ideólogos
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populistas de laboratório
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administradores de marketing
-
tiranos de gabinete
Sem a pedagogia do poder, o cargo grande torna-se psíquica e espiritualmente destrutivo.
A capital, com suas seduções, pressões e ilusões, exige uma alma madura, trabalhada, provada no fogo da vida real.
V. A sabedoria espiritual na formação do governante
A tradição cristã — que inspirou grande parte da ética governamental no mundo ibérico — reforça a mesma ideia:
“Quem é fiel no pouco será colocado sobre o muito.”
(Evangelho de São Mateus)
O grande governo começa no lar, depois na pequena comunidade, depois em territórios maiores. Esta hierarquia é uma escola de virtude e humildade.
O governante itinerante adquire:
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caridade
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prudência
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coragem
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fortaleza
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justiça
E apenas então está apto a guiar muitos homens, como um pastor guia seu rebanho.
VI. Conclusão: a verdadeira grandeza começa no pequeno
O modelo que proposto — de começar governando áreas menores, melhorar regiões interioranas e só depois ascender à capital ou à presidência — é, na verdade, um retorno à visão clássica do poder.
E esta visão afirma:
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Serviço é a base do poder.
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Pequenas autoridades preparam grandes autoridades.
-
O itinerante conhece o povo e amadurece no caminho.
-
A grandeza é multigeracional.
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A autoridade legítima nasce da experiência concreta e da fidelidade comprovada.
Se o Brasil tivesse nobreza, seria dessa forma que ela se consolidaria — por serviço, proximidade com o povo e construção paciente da autoridade, geração após geração.
Bibliografia Sugerida
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ARISTÓTELES. Política.
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PLATÃO. A República.
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CÍCERO. De Officiis (Dos Deveres).
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SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Regno (Do Governo dos Príncipes).
2. Tradição cristã e ética do poder
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SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus.
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SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica.
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JACQUES MARITAIN. O Homem e o Estado.
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RUSSELL HITTINGER. Aquinas: Ethics, Law and Politics.
3. História da nobreza europeia
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MARC BLOCH. A Sociedade Feudal.
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NORBERT ELIAS. A Sociedade de Corte.
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D. G. BOULGER. The Middle Ages (sobre governança e hierarquia).
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4. Pensamento político moderno com perspectiva tradicional
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ALEXIS DE TOCQUEVILLE. A Democracia na América (para compreender o perigo do poder centralizado e do igualitarismo sem hierarquia).
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5. Tradição ibérica (especialmente relevante para o Brasil)
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FRANCISCO SUÁREZ. De Legibus (as leis e a autoridade cristã).
6. História brasileira e administração tradicional
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CAPISTRANO DE ABREU. Capítulos de História Colonial.
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7. Obras contemporâneas sobre virtude, liderança e serviço
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JAMES HUNTER. O Monge e o Executivo (sobre liderança servidora).
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