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domingo, 9 de novembro de 2025

A pedagogia do poder: a nobreza itinerante e a construção geracional da autoridade

Introdução

Se o Brasil tivesse preservado uma tradição nobiliárquica sólida, ou mesmo se tivesse reconstruído uma nova nobreza baseada no mérito, no serviço e na responsabilidade cristã, a formação do governante se daria em etapas. A autoridade política não seria conquistada por atalhos eleitorais, mas por um trabalho concreto, paciente e generoso.

Nesse modelo, mais vale ser prefeito itinerante, servindo diversas regiões, reorganizando pequenas comunidades e sanando carências locais, do que ocupar imediatamente a prefeitura de uma capital ou lançar-se em carreira meteórica rumo ao governo ou à presidência da província. O poder maior exige maturidade que somente a experiência e as gerações podem formar.

Este artigo explora essa lógica, inspirada tanto nas práticas medievais quanto nas doutrinas políticas clássicas, mostrando que a verdadeira grandeza começa no pequeno, e que o poder só é legítimo quando enraizado em serviço.

I. A estrutura tradicional do poder

Na tradição europeia pré-moderna, a formação do governante seguia um princípio fundamental:

A autoridade exige aprendizagem, e a aprendizagem exige proximidade com a realidade.

Isso significa que ninguém deveria assumir governança ampla antes de ter servido com fidelidade em pequenas unidades políticas:

  • aldeias

  • vilas

  • castelos

  • feudos regionais

  • fronteiras distantes

Tal pedagogia do poder era a garantia de que o futuro príncipe não seria apenas um tecnocrata distante, mas um verdadeiro pai do povo, conhecedor de suas necessidades, das riquezas do território e da alma coletiva.

Assim funcionavam:

  • os intendentes régios da França,

  • os corregedores portugueses,

  • os cavaleiros ingleses a serviço do rei,

  • os doges venezianos que haviam começado em antigos conselhos locais,

  • os governadores coloniais que antes haviam sido capitães de pequenas fortalezas.

A grandeza vinha depois.

II. A função do prefeito itinerante

A figura do “prefeito itinerante” ecoa a lógica do funcionário régio enviado às zonas necessitadas, cuja missão era:

  • organizar o território,

  • pacificar conflitos,

  • estabelecer rotinas administrativas,

  • criar infraestrutura mínima,

  • formar lideranças locais confiáveis.

Essa missão exige habilidades que a capital não ensina:

  1. Tato humano – lidar com populações vulneráveis, entender tensões, mediar conflitos.

  2. Criatividade administrativa – improvisar soluções com poucos recursos.

  3. Coragem moral – enfrentar elites locais, corporações, caciques e vícios estruturados.

  4. Leitura do território – saber como o solo, o clima, a cultura e a economia moldam o comportamento coletivo.

  5. Paciência histórica – compreender que os frutos de uma boa administração só aparecem anos depois.

Esses elementos produzem um governante que não é meramente técnico, mas pedagogo do poder, capaz de ensinar e elevar a população.

III. O princípio da geração seguinte

A nobreza tradicional não pensava em termos de ambição pessoal, mas em termos de construção familiar e comunitária.

O poder de hoje prepara o poder de amanhã, que pertence à próxima geração.

A autoridade cresce assim:

  • A primeira geração serve, forma reputação, estabiliza.

  • A segunda geração herda o respeito e pode aspirar a cargos maiores.

  • A terceira geração consolida e projeta uma identidade própria à casa familiar.

Isso cria continuidade, virtude e responsabilidade, algo raro na política moderna, fragmentada e imediatista.

A expansão do poder territorial era feita assim:

  • primeiro o condado,

  • depois o ducado,

  • mais tarde, a capital,

  • e apenas quando provada e testada, a província inteira.

No Brasil imaginado sob esse modelo, não seria diferente: ninguém governaria uma capital sem que sua casa tivesse prestado, antes, décadas de serviço invisível e eficiente em regiões periféricas.

IV. O problema do poder prematuro

A modernidade introduziu o fenômeno do “carreirismo político”, onde o indivíduo pula etapas:

  • vereador → prefeito → governador → presidente

  • sem jamais experimentar a realidade concreta da vida cotidiana do povo

Esse modelo cria governantes descolados:

  • tecnocratas

  • ideólogos

  • populistas de laboratório

  • administradores de marketing

  • tiranos de gabinete

Sem a pedagogia do poder, o cargo grande torna-se psíquica e espiritualmente destrutivo.

A capital, com suas seduções, pressões e ilusões, exige uma alma madura, trabalhada, provada no fogo da vida real.

V. A sabedoria espiritual na formação do governante

A tradição cristã — que inspirou grande parte da ética governamental no mundo ibérico — reforça a mesma ideia:

“Quem é fiel no pouco será colocado sobre o muito.”
(Evangelho de São Mateus)

O grande governo começa no lar, depois na pequena comunidade, depois em territórios maiores. Esta hierarquia é uma escola de virtude e humildade.

O governante itinerante adquire:

  • caridade

  • prudência

  • coragem

  • fortaleza

  • justiça

E apenas então está apto a guiar muitos homens, como um pastor guia seu rebanho.

VI. Conclusão: a verdadeira grandeza começa no pequeno

O modelo que proposto — de começar governando áreas menores, melhorar regiões interioranas e só depois ascender à capital ou à presidência — é, na verdade, um retorno à visão clássica do poder.

E esta visão afirma:

  1. Serviço é a base do poder.

  2. Pequenas autoridades preparam grandes autoridades.

  3. O itinerante conhece o povo e amadurece no caminho.

  4. A grandeza é multigeracional.

  5. A autoridade legítima nasce da experiência concreta e da fidelidade comprovada.

Se o Brasil tivesse nobreza, seria dessa forma que ela se consolidaria — por serviço, proximidade com o povo e construção paciente da autoridade, geração após geração.

Bibliografia Sugerida 

1. Teoria política clássica

  • ARISTÓTELES. Política.

  • PLATÃO. A República.

  • CÍCERO. De Officiis (Dos Deveres).

  • SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Regno (Do Governo dos Príncipes).

2. Tradição cristã e ética do poder

  • SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus.

  • SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica.

  • JACQUES MARITAIN. O Homem e o Estado.

  • RUSSELL HITTINGER. Aquinas: Ethics, Law and Politics.

3. História da nobreza europeia

  • MARC BLOCH. A Sociedade Feudal.

  • NORBERT ELIAS. A Sociedade de Corte.

  • D. G. BOULGER. The Middle Ages (sobre governança e hierarquia).

  • LAWRENCE STONE. The Crisis of the Aristocracy.

4. Pensamento político moderno com perspectiva tradicional

  • EDMUND BURKE. Reflexões sobre a Revolução em França.

  • ALEXIS DE TOCQUEVILLE. A Democracia na América (para compreender o perigo do poder centralizado e do igualitarismo sem hierarquia).

  • MICHEL MONTESQUIEU. O Espírito das Leis.

5. Tradição ibérica (especialmente relevante para o Brasil)

  • PADRE ANTÔNIO VIEIRA. Sermões (em especial os sermões políticos).

  • SORIANO RIBEIRO. O Governo da Casa e da República.

  • D. JOÃO DE CASTRO. Espelho de Príncipes.

  • FRANCISCO SUÁREZ. De Legibus (as leis e a autoridade cristã).

6. História brasileira e administração tradicional

  • CAPISTRANO DE ABREU. Capítulos de História Colonial.

  • SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA. Raízes do Brasil.

  • CAIO PRADO JR. Formação do Brasil Contemporâneo.

  • JOÃO LÚCIO DE AZEVEDO. Os Jesuítas no Brasil (para entender a organização e administração local).

7. Obras contemporâneas sobre virtude, liderança e serviço

  • JAMES HUNTER. O Monge e o Executivo (sobre liderança servidora).

  • ROBERT GREENLEAF. Servant Leadership.

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