Enunciado:
Vivemos um tempo em que a aparência de poder foi elevada à condição de bem simbólico supremo. Não basta ser produtivo — é preciso parecer importante. Esse fenômeno, já denunciado por Thorstein Veblen em sua teoria da classe ociosa, mostra como determinados estratos da sociedade buscam se distinguir por meio do consumo ostentatório e de carreiras respeitáveis que servem mais à aparência do que à função.
Contudo, há um personagem novo emergindo nas margens desse sistema: o empreendedor que serve sob CNPJ alheio. Ele trabalha em firmas de limpeza, em estoques, em cozinhas industriais, em transportadoras — e o faz não como quem se resigna, mas como quem estuda o mundo por dentro. Cada função é para ele uma lição. Cada tarefa, uma possibilidade de inovação.
Inside Information do Mundo Real
Esse empreendedor invisível não tem crachá de executivo nem diploma de prestígio. O que ele tem é algo mais raro: inside information da realidade. Ao servir em empresas alheias, ele aprende os segredos do funcionamento de setores inteiros — como se limpar um piso de mármore, como organizar um estoque para reduzir perdas, como tratar um cliente mal-humorado e fidelizá-lo.
A maioria das pessoas passa por essas funções como quem apenas cumpre expediente. Mas o empreendedor dotado de olhar crítico transforma esse percurso em capital prático acumulado — algo que nenhuma faculdade ensina. É o saber do chão de fábrica, da rotina doméstica, das engrenagens ocultas da vida.
Educação Prática e Invenção de Novas Profissões
E se, além disso, esse empreendedor tiver cultura e formação teórica, ainda que autodidata, ele é capaz de inventar uma nova profissão. Pode transformar seu conhecimento em curso, produto, serviço, patente, franquia. Pode reorganizar um setor a partir de um detalhe que só quem serve enxerga.
A consequência disso é um reposicionamento silencioso do que entendemos por vocação e por ensino superior. Aqueles que não têm talento para o saber teórico abandonam o curso superior não por fracasso, mas por honestidade consigo mesmos. Com isso, liberam espaço para que os verdadeiramente vocacionados à ciência e à filosofia floresçam. E a universidade volta a ser o que deveria: um templo do espírito, e não um cabide de status social.
A Queda da Classe Ociosa
Esse movimento, ainda que discreto, representa uma ameaça real à classe ociosa. Pois ele rompe com o jogo simbólico que sustentava seu poder: o da aparência. O empreendedor do serviço invisível não precisa parecer poderoso — ele é produtivo de fato. Ele serve, resolve, inova. E, aos poucos, eleva o prestígio do trabalho bem-feito acima da pose vazia.
Enquanto os membros da classe ociosa se apegam a cargos e títulos para manter suas posições, esse novo sujeito se torna irreversivelmente livre. Ele não precisa de permissão para criar. Ele cria a partir do que viu, do que tocou, do que resolveu com as próprias mãos.
Conclusão
O caminho de santificação pelo trabalho passa por esse reconhecimento: é possível construir uma vida intelectual e produtiva servindo em funções humildes. O empreendedor que trilha essa via não se ilude com aparências. Ele compreende que o poder verdadeiro vem do serviço, e que a vocação se revela não no desejo de brilhar, mas na disposição de aprender, servir e criar.
Essa é a revolução silenciosa dos que ainda acreditam que o trabalho, quando bem feito, é um ato de amor.
Bibliografia comentada
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Thorstein Veblen — A Teoria da Classe Ociosa
Obra fundamental para compreender o conceito de "consumo conspícuo", ou seja, o uso do consumo e da aparência como sinais de status. Veblen descreve uma classe social que vive da exibição de poder simbólico, sem produzir valor real. Serve de contraponto ao empreendedor prático descrito neste artigo. -
Matthew B. Crawford — O Valor do Trabalho: O que perdemos ao delegar o pensar e o fazer
O autor defende a dignidade e a inteligência prática do trabalho manual. Ele mesmo largou a carreira acadêmica para abrir uma oficina de motocicletas. É leitura essencial para compreender a importância da experiência concreta como forma de conhecimento. -
Josiah Royce — A Filosofia da Lealdade
Obra recomendada por Olavo de Carvalho, trata da ideia de lealdade a causas superiores ao próprio ego. Serve como base filosófica para entender o serviço bem feito como vocação e como forma de santificação. -
Olavo de Carvalho — O Jardim das Aflições
Reflete sobre o conflito entre forma e substância na civilização moderna. O livro ajuda a entender como a cultura da aparência destrói a autoridade real, deslocando o poder do serviço para o simulacro. -
Pierre Bourdieu — A Distinção: Crítica Social do Julgamento
Bourdieu explora como o gosto, o consumo e o capital cultural são utilizados para distinguir classes sociais. Reforça a crítica à educação superior como instrumento de reprodução simbólica da elite ociosa. -
Rerum Novarum — Papa Leão XIII
Encíclica que apresenta a visão católica sobre o trabalho, o capital e a justiça social. Afirma que o capital é o acúmulo de bens justos obtidos por meio do estudo e do trabalho ao longo do tempo — visão profundamente alinhada à ideia de santificação pelo serviço produtivo.
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